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REPORTAGEM

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'Sou só um pobre': A Bíblia e os caprichos de Murilo Rubião

Murilo Rubião numa esquina de Belo Horizonte - Humberto Nicoline/ Site oficial de Murilo Rubião
Murilo Rubião numa esquina de Belo Horizonte Imagem: Humberto Nicoline/ Site oficial de Murilo Rubião

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

12/10/2022 04h00

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"Seja aquela uma noite solitária, e não digna de louvor".

"Vê pois que passam os meus breves anos, e eu caminho por uma vereda, pela qual não voltarei".

"Olha pra mim, e tem misericórdia de mim; porque eu sou só um pobre".

"Também eu fui reduzido ao nada, e não o entendi".

São trechos destacados num exemplar da "Bíblia", uma edição impressa em 1902 do texto aprovado em 1842 pela Rainha D. Maria II com a consulta do Arcebispo eleito de Lisboa. Surrado, com evidências de intenso manuseio, grifado, anotado, o volume foi traduzido para o português "segundo a vulgata latina pelo padre Antoni". E aqui não conseguimos descobrir quem é o sujeito. Soterrando a informação, um carimbo com o nome do dono daquele livro: Murilo Engenio Rubião.

Ao lado de Machado de Assis, a "Bíblia" é uma das influências mais presentes na literatura de Murilo Rubião, exímio contista de obra enxuta, composta por pouco mais de 30 narrativas breves. É comum que as histórias sejam precedidas por citações do livro tido como sagrado para tantos. Agnóstico, o mineiro encontrava principalmente no Antigo Testamento, com preferência pelo Apocalipse, as epígrafes que ecoam ao longo de páginas marcadas pelo modo como o fantástico é absorvido e normalizado, quase desprezado, por uma realidade apática.

A "Bíblia" de Rubião é destaque do novo site que reúne parte significativa do acervo do autor. Quem assina a curadoria do espaço virtual é a jornalista e editora Sílvia Rubião, sobrinha do escritor e gestora de sua obra, e Cleber Cabral, pesquisador do Núcleo de Estudos dos Acervos de Escritores Mineiros. O material reunido perpassa diferentes momentos da vida do artista nascido 1916 e morto em 1991.

Estão ali fotos familiares, registros profissionais, fortuna crítica e cartas enviadas para Murilo por colegas como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Otto Lara Resende. Merece atenção um depoimento em vídeo de Antonio Candido sobre a relação com o mineiro (é ótima a história contada de que o escritor desconfiava ser parente de Rubião, personagem machadiano de "Quincas Borba").

Também é bonito de ver o fac-símile digital da primeira edição de "A Estrela Vermelha", livro de 1953 feito com tiragem limitada e que apresentava aos leitores quatro contos: "A Estrela Vermelha", "Flor de Vidro", "A Lua", "D. José Não Era", lido numa edição do podcast da Página Cinco.

Rubião era obcecado por buscar a perfeição em seus textos. É famoso por escrever pouco e reescrever muito. Alguns manuscritos apresentados no site permitem que o leitor tenha noção de como funcionava esse processo. Às vezes, uma palavrinha aqui, uma substituição acolá, já mudam a cara do texto.

Exemplo é o trabalho em "Teleco, O Coelhinho", dos seus contos mais festejados. Ao colocar o intenso 'tamanhas' em "Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava" e trocar o exagerado "possuir" por "ter" em "Disse não ter morada certa", muda sensivelmente o tom de um trecho específico da história.

Caprichos que fazem de Rubião o grande autor que é.

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