Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Realismo mágico e as nossas vidas atropeladas pela fantasia
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Tenho um pé atrás com o rótulo realismo mágico ou fantástico. É só aparecer uma criança com um rabo de porco que alguém já aponta: olha lá a fantasia. Talvez não seja bem assim. O rabo de porco pode ser a explicação possível (e, na ótica de quem nela acredita, completamente real) para uma anomalia qualquer. A esquisitice compreendida como rabo de porco vira fantástica quando confrontada com certas formas de dar conta do real. Para quem não vislumbra outros caminhos para explicar determinados fenômenos, um rabo de porco numa pessoa pode ser realidade pura.
Vivemos num mundo - e num canto deste mundo - dominado por histórias que, caso estivessem na literatura, provavelmente seriam tratadas como realismo mágico. Olhemos para a relação com os mortos. Na Argentina, o corpo de Eva Perón viveu uma saga tão conturbada que inspirou o ótimo livro de Tomás Eloy Martínez: "Santa Evita".
Ainda por lá, outro dia um torcedor saiu pelas ruas para comemorar um título do Racing carregando consigo o crânio do avô. De restos mortais e futebol, agora em outros países, temos ainda torcedor sendo levado ao estádio e outro fazendo gol em pelada, ambos já lacrados dentro do caixão. Durante a pandemia, um homem foi preso após retirar o corpo de sua avó do túmulo e dançar com a finada pelas ruas de Manaus. É um Quincas Berro D'Água em cada esquina.
Volto a "Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa: Duas Solidões". Diz Gabo em certa altura do papo: "Acho que particularmente em 'Cem Anos de Solidão' eu sou um escritor realista, porque creio que na América Latina tudo é possível, tudo é real". Depois, enfatiza como as histórias populares carregam em si "uma fantasia extraordinária" e recorda de um ditador que usava um mero pêndulo para averiguar se o alimento estava envenenado: dependendo para onde ia o aparelho, comia ou desprezava a refeição.
"O que acontece é que, na América Latina, por decreto se esquece um acontecimento de uns três mil mortos... Isso, que parece fantástico, foi tirado da mais miserável realidade cotidiana", comenta Gabo pouco mais adiante, numa alusão a trecho dos mais marcantes de "Cem Anos de Solidão". Na passagem, milhares de trabalhadores são massacrados por militares, que depois negam suas ações e afirmam não haver morto algum.
"'Com certeza foi um sonho', insistiam os oficiais. 'Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem acontecerá nada nunca. Este é um povo feliz'. Assim consumaram o extermínio dos chefes sindicais", lemos naquela altura do romance. O esquecimento dos mortos ecoa no modo como boa parte do Brasil parece ter normalizado as centenas de milhares de vidas que se foram na pandemia por culpa do governo negacionista e corrupto, que negociava propina enquanto precisávamos de vacina.
Outro dia, numa disputa terrena que descambou para apelações divinas, o PT precisou soltar uma nota para negar que Lula teria papeado com o capeta ou algo do tipo. Soa bizarro porque não se trata de entidade com grande prestígio nem massivo fã-clube. Mas a desconfiança de que alguém poderia mesmo se reunir com o capiroto faz sentido na cabeça de quem não só acredita, mas pauta sua vida de acordo com supostos preceitos do antagonista do tinhoso - e esses são milhões. Pura fantasia para alguns, base inegociável para a compreensão do próprio mundo para muitos, eis o exemplo maior de como o fantástico está entremeado e forja o próprio real: a ideia de um deus. Ideia que passou a ditar os rumos do país.
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