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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Os eleitores no 'Brasil de Bolsonaro': 'Eu me senti poderoso, queria arma'

Arte de Rapha Baggas para a capa de O Brasil de Bolsonaro. - Reprodução
Arte de Rapha Baggas para a capa de O Brasil de Bolsonaro. Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

26/10/2022 04h00

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Por meio de exemplos do dia a dia, Jani tentou mostrar para pessoas próximas que a opção por Bolsonaro não condizia com a realidade ao redor. Não bastou. Buscavam por algo novo, ouvia como resposta, apesar de não saberem definir essa ansiada novidade. Na apuração do segundo turno, perguntou para o namorado de sua prima o que ele sentia ao escutar Bolsonaro. "Eu me sinto poderoso. Sinto uma energia, Jani, eu sei que ela não é boa, mas me sinto diferente... dá vontade de pegar em arma".

A mulher ficou surpresa. Até então, tentava encaminhar os papos para assuntos como economia, não sensação de poder. Quis conhecer melhor esses sentimentos do rapaz. Após questionar por que ele tinha votado em alguém que lhe despertava coisas ruins, ouviu: "Toda vez que a gente discute, Jani, eu me controlo pra não ser violento! A vontade é te falar: 'cala a boca, fica quieta!' Mas tento contra-argumentar".

A história da Jani é um dos quase 50 relatos presentes em "O Brasil de Bolsonaro: Testemunhos Históricos de um País em Guerra Narrativa", livro da pesquisadora e jornalista Carolina Grohmann que acaba de sair pela Mireveja. Fazendo par com trabalhos como o podcast "Brasil Partido", de João Fellet, a obra é um esforço para fornecer elementos que ajudem a compreender a cisão vivida pelo país. Numa pegada semelhante à empregada pela bielorussa Svetlana Aleksiévitch nos trabalhos que lhe renderam o Nobel de Literatura, Carolina colheu relatos de dezenas de brasileiros e os transformou nos textos que agora chegam aos leitores.

"Na noite do resultado do segundo turno de 2018, as minhas perguntas eram: quais são as histórias por trás de cada voto? Quem vai cuidar dessas histórias? E depois, com Bolsonaro eleito, como continuar contando as histórias desse voto, que dura, pelo menos, quatro anos? Foi quando me desafiei a registrar a história do período eleitoral e do governo Bolsonaro a partir das histórias e experiências individuais, as chamadas micro-histórias, fadadas ao esquecimento no registro da oficial", enumera a autora.

O homem orgulhoso por ter carregado Bolsonaro nos ombros no dia em que o então candidato levou uma facada. O negro que diz não ser vitimista. O crente que afirma ter estudado "biblicamente" os presidenciáveis de 2018. O filho de ex-sindicalista que soltou rojão quando Lula foi preso. O eleitor que reafirma a clareza para votar em branco com "paz no coração". A mulher trans que defende intervenção militar. Aqueles que parecem ter descoberto a fonte da sabedoria em Olavo de Carvalho e nos canais de extrema-direita do YouTube. O evangélico de esquerda que crava: "Evangélico que quer seguir Jesus é uma minoria".

O Brasil de Bolsonaro, de Carolina Grohmann. - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

É boa a gama de personagens encontrados por Carolina. Ao longo de histórias de teor bem diferentes, acompanhamos testemunhos que ajudam a entender como o caldo de brutalidade e estupidez engrossou nos últimos anos. "O Brasil de Bolsonaro" também serve como breve panorama dos horrores que vivemos desde a última eleição presidencial.

O desprezo pela vida durante a pandemia, os crimes ambientais disfarçados de tragédias e as maracutaias para passar a boiada país afora são algumas das podridões que reencontramos pelas páginas. É marcante ver o depoimento de um ambientalista que teme ser assassinado por trabalhar para manter as florestas em pé e o direito de famílias não serem perseguidas por grileiros.

Numa das histórias que se cruzam, Carolina também ouviu Leandro, o primo de Jani, os dois do relato que abre esta coluna. O rapaz recorda de como acompanharam o resultado do segundo turno das eleições de 2018. Mesmo com a prima triste, não tirou o sorriso sarcástico do rosto. "Dei murros na parede... Gritei vivas... Hoje, eu penso: o que foi aquilo? Eu fui idiotizado!", comenta. Quatro anos e um mandato depois, a visão do homem sobre aquele que um dia acreditou ser o salvador é completamente diferente:

"Meu candidato deve ser lembrado na história como um traidor da pátria. Como mentiroso e traidor. Porque ele mentiu. Ele fez promessas... Ele nos deu esperança, que é mais importante que qualquer promessa. Ele nos deu a esperança de que não haveria corrupção, de que haveria empregos, de que não haveria aliança com o centrão... E a gente sabe que historicamente não é assim que o Brasil funciona. A gente devia ter entendido, naquela época, que esse cara não entendia de história. E história... história se repete. Por isso, ele deve ser lembrado como um traidor da pátria. Como um miliciano que chegou ao poder".

Na introdução de "O Brasil de Bolsonaro", Carolina diz reconhecer, embasada tanto pela experiência pessoal quanto como escutadeira-escritora, que o Brasil é um país em guerra. Já nos agradecimentos, revela que em certa altura do trabalho lhe ocorreu uma dúvida: seria possível voltar a ser feliz? É uma pergunta que me faço.

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