Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
"A liberdade não é o problema. O problema são os homens"
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Na quarta parte de "2666", o chileno Roberto Bolaño constrói uma das passagens mais maçantes da literatura. São cerca de 250 páginas em que o leitor se depara com uma quantidade gigantesca de mulheres assassinadas num território remoto do México, uma espécie de deserto de sangue. A maneira de expor a carnificina nos faz refletir sobre como a morte, ao se avolumar, torna-se banal. O impacto que o horror tem no primeiro momento e deveria ter sempre se dissipa com o passar do tempo, das páginas.
A violência contra a mulher é um dos grandes temas da atual literatura latino-americana. Encontramos a brutalidade a elas infligida em contos como "Leilão", que abre "Rinha de Galos", da equatoriana María Fernanda Ampuero, em romances como "Mulheres Empilhadas", da brasileira Patricia Melo, e em não ficções de formas inventivas como "Garotas Mortas", da argentina Selva Almada.
Em "O Invencível Verão de Liliana", da mexicana Cristina Rivera Garza, o que o leitor encontra é uma investigação que aproxima a obra do trabalho de Selva. Ao mesmo tempo, toma um caminho diferente do de Bolaño ao mirar no horror cometido contra uma única mulher, o que nos faz lembrar do impacto, inclusive simbólico, que uma história centrada e bem contada pode ter.
Após colecionar prêmios, o livro chega agora ao Brasil com tradução de Silvia Massimini Felix em edição da Autêntica Contemporânea (que se explica demais em pelo menos uma oportunidade, com notas de rodapé atropelando o que seria a função do leitor sacar ou não). Na obra, Cristina mergulha numa tragédia familiar e reconstrói a história de Liliana Rivera Garza, sua irmã, morta pelo namorado aos 20 anos, no dia 16 de julho de 1990.
"É possível ser feliz quando se vive de luto?", questiona-se a autora 30 anos após o assassinato. A dor e certa culpa de quem permanece vivo são elementos latentes num texto erguido a partir de informações coletadas em pertences íntimos de Liliana, relatórios policiais, material jornalístico e arquivos da justiça que rendem à narrativa toques kafkianos. Com uma escrita que alterna construções mais duras com outras mais sensíveis e poéticas, Cristina mostra talento para lapidar frases contundentes e passagens memoráveis. Um exemplo:
"É mentira que o tempo passa. O tempo fica travado. Há um corpo inerte aqui, preso entre as dobradiças e os parafusos do tempo, que suspende o ritmo e a sequência. Não crescemos. Nunca iremos crescer. Nossas rugas são artificiais, apenas indícios de vidas que poderíamos ter vivido, mas que foram para outro lugar. Os cabelos grisalhos, as cáries, os ossos frágeis, as juntas rígidas: meras posturas que escondem a repetição, a redundância, o estribilho. Estamos presos numa bolha de culpa e vergonha, perguntando-nos continuamente: o que não vimos? Esse é o eco".
De uma citação de Albert Camus pescada de um dos cadernos da irmã que Cristina tira o título de seu trabalho: "E, no meio de um inverno, finalmente aprendi que havia dentro de mim um invencível verão". É bonito notar como "O Invencível Verão de Liliana" parte da tragédia para reerguer a figura da jovem assassinada enquanto cursava arquitetura e vivia pela Cidade do México e arredores.
A história de Liliana se faz aos poucos diante dos olhos do leitor, como se cada elemento surgisse primeiro por frestas para depois se estabelecer como um dado de sua personalidade. O que Cristina nos apresenta é uma mulher amiga, sensível, convicta de suas vontades e desejos. Forte, atraente, luminosa, sedenta por liberdade, que recusava ser propriedade de alguém e "sabia como curar e ferir com palavras". Alguém que aos poucos se transforma, fica angustiada, insinua o medo por conta do mal que lhe espreita.
Em conversas sobre sua obra, Cristina costuma comentar como oscila entre gêneros dentro de um mesmo trabalho. Na sua ótica, apesar da mistura possível, cada livro tem uma espécie de gênero anfitrião. Se a arquitetura do texto e o tom de muitas passagens aproximam "O Invencível Verão de Liliana" do romance, a forma como a autora trabalha com diários, depoimentos, documentos, reportagens e cartas (opção precisa para trazer a voz de Liliana para dentro da narrativa) aliada à pegada ensaística faz da não ficção a anfitriã da vez. E sim, estamos falando de um livro de rara hibridez.
Nesse sentido, é de manifesto o tom adotado por Cristina ao olhar para os recentes movimentos de mulheres que reivindicam o que deveria ser o básico: não serem assassinadas por criminosos que se pensam seus donos. É fácil lembrar Raimundo Carrero e a defesa da "luta verbal" no lugar da literatura nos instantes em que "O Invencível Verão de Liliana" soa como um punho em riste. O acerto com o compromisso ético, no entanto, abala o conjunto estético, que momentaneamente fica com cara de panfleto.
Se a história de Liliana é única, o crime que acabou com a sua vida é uma mácula que segue a nos aterrorizar. O horror machista está aí, disseminado socialmente, bebendo cerveja nas esquinas, institucionalizado em muitas instâncias de um sistema que acoberta abusadores. Importante o olhar de Cristina para como lutas travadas coletivamente são fundamentais não só para escancarar a questão, mas também formular uma linguagem capaz de definir o que se passou com sua irmã e ainda se passa com tantas outras.
Liliana não sabia nomear direito o abuso, depois fatal, sofrido. Hoje, provavelmente seria mais fácil de conversar com alguém a respeito do que viveu. Termos como assédio e violência sexual viraram parte da linguagem cotidiana. Agora soa como estupidez alguém tratar o feminicídio como loucura causada pelo amor ou alguma balela similar. A mortandade segue, mas o mundo é diferente daquele em que Liliana viveu até ser assassinada enquanto dormia.
Ao revirar o passado, voltar aos tempos do crime e dar nova vida - agora literária - para Liliana, a sua irmã, Cristina Rivera Garza entrega aos leitores um trabalho ao mesmo tempo lindo e revoltante. E duro. "A liberdade não é o problema. O problema são os homens", lemos em certa altura de "O Invencível Verão de Liliana". Difícil discordar após chegarmos à última página.
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