Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Benjamín Labatut, a biblioteca de 10 livros e o medo do caos
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Ainda que por um caminho turbulento, poucos autores chamaram tanta atenção nesta Flip quanto o chileno Benjamín Labatut. Aqui e ali pipocavam relatos sobre alguém pouco afável, que não fazia grande questão de manter um clima amistoso mesmo em conversas banais. Não só. Labatut dividiria uma mesa com o crítico literário Luiz Mauricio Azevedo. Dividiria. De última hora pediu para dispensarem o parceiro. Preferia estar em cena acompanhado apenas da mediadora Rita Palmeira. Foi atendido.
No papo, escorou-se em Roberto Bolaño para dizer que desconfia do sucesso e que prepara o próprio fracasso. Em outro momento, sublinhou não estar interessado em discutir a moralidade, pois "qualquer idiota sabe distinguir o bem do mal". Também defendeu uma literatura que corra riscos. Resolveu, então, se arriscar com o microfone em mãos e rebaixou a arte que o levou até Paraty.
Disse que não teria importância se a literatura - colocada como algo menor do que o cinema - acabasse. Sugeriu que seria uma boa se existissem menos livros, menos autores, menos editoras. Comparou a leitura com uma dieta de alimentos para recomendar que deveríamos ler menos porcarias da mesma forma como reduzimos a quantidade de tranqueiras ao seguir a boa alimentação. Aconselhou a todos que condensassem sua biblioteca a, no máximo, dez livros.
Provavelmente a imagem que construiu de si em Paraty contribuiu decisivamente para que poucos interpretassem a mensagem como uma hipérbole, um exagero, não de forma literal. Se foi piada, ninguém riu. Mesmo os bons momentos da mesa com Labatut ficaram eclipsados pela caricatura construída: um escritor que vai à festa literária para, de certa forma, pregar contra os livros.
Declarações do tipo atraem os olhares, como a dinâmica das redes nos esfrega na cara a cada bobagem compartilhada. E se cá estamos falando de Labatut pelo que está além da literatura, pelo menos temos um gancho para voltarmos para dentro de seus livros. Incensado como fenômeno literário de alguns meses atrás graças a "Quando Deixamos de Entender o Mundo", bom trabalho que perde diversos pontos pelo final desastroso, antes da Flip um novo título do autor chegou ao Brasil.
Iluminado por Hieronymus Bosch, no ligeiro "A Pedra da Loucura" (Todavia, tradução de Mariana Sanches) temos dois textos em que a pegada ensaística é ainda mais evidente do que nas histórias de "Quando Deixamos de Entender o Mundo". Certas repetições, por um lado, e aspectos que mereciam uma maior atenção, por outro, deixam cambaleante o breve volume - são apenas 69 páginas num formato de bolso.
No primeiro ensaio, maior e melhor do que o segundo, Labatut mistura teorias da dama e do xadrez ao pensamento de autores como Philip K. Dick e H. P. Lovecraft (de quem abraça uma perigosa noção de "pessoas com um intelecto mais amplo") para analisar as manifestações populares que levaram o Chile à recente convulsão social. A forma como o mundo até então organizado é rompido e o imponderável emerge é uma das chaves para entender o trabalho do autor.
A Labatut interessa investigar o que acontece quando os limites são quebrados, quando o caos é nutrido de forma paulatina até que atinja proporções inimagináveis. A desconfiança de tudo o que nos cerca e a outrora palpável realidade como elemento inalcançável neste mundo de crises e desconexões são eixos importantes num texto que olha para o permanente ataque sofrido pela "cidadela da razão".
"Isso é real? Já não há uma resposta simples para essa pergunta, pois o que está acontecendo à nossa volta é real e irreal ao mesmo tempo", escreve. E aqui recordo, uma vez mais, de García Márquez comentando com Llosa que desconfia do termo realismo mágico, pois na América Latina tudo é real, tudo é possível.
No segundo ensaio, de caráter bem mais pessoal, o escritor comenta como seu trabalho o transformou numa espécie de para-raios de malucos. Então, conta a história de uma mulher que passou a lhe acusar de plágio. Labatut seria mais uma ponta de uma grande tramoia que importantes agentes do mercado editorial teriam arquitetado contra a moça. O que o escritor reporta é exemplo do suco de conspiracionismo e frustração que inunda a internet.
Em certa altura desse segundo texto, o convidado da Flip menciona o estranho sentimento de viver num mundo que perdeu algo essencial. Sim, inegável, estamos metidos num instante da história em que muitas bases antes solidificadas se desmancham. E daí destaco um breve trecho do primeiro ensaio de "A Pedra da Loucura". Escreve Labatut: "A irrupção do novo é um processo traumático".
Pode ser - me parece mesmo que é, aliás. Mas também me parece que recusar esse processo é aderir covardemente ao conservadorismo que impede que importantes placas tectônicas da sociedade e do conhecimento sejam enfim movidas. A impressão é que Labatut está assustado com o caos, ávido para que certezas se reestabeleçam, algo essencial em alguns casos, mas que cheira a mofo em outros. Faz bem questionar as verdades até outro dia petrificadas na arte.
Criar condições para que mais pessoas escrevam, mais editores editem e livros sejam mais lidos é um movimento importante, que deve se valer do olhar crítico, não da dificuldade de acesso, para garantir que cada leitor tenha sua dieta intelectual balanceada. Uma biblioteca de dez livros só é satisfatória para quem tem medo de mergulhar no caos e, a partir disso, colocar em xeque as próprias convicções e refletir a respeito de certezas supostamente absolutas.
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