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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Os machinhos perversos que se perdem entre frustrações e desejos

A mexicana Fernanda Melchor, autora de Páradais e de Temporada de Furacões - Divulgação
A mexicana Fernanda Melchor, autora de Páradais e de Temporada de Furacões Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

09/01/2023 04h00

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Condomínios de luxo que buscam apartar seus moradores do que há no seu entorno parecem ser mais um elo entre as Américas - e aqui não me refiro somente à porção latina. Essas construções almejam ser uma bolha artificialmente paradisíaca na qual os residentes ficam distantes dos horrores existentes do lado de lá dos muros altos, cercas, controles rígidos e seguranças armados. Os cheios de grana, dentro dessas jaulas espaçosas e bem ornamentadas, têm a ilusão de estarem resguardados de qualquer mal.

O mundo, no entanto, é um só. Muralhas e sofisticados controles de segregação social são falhos contra fronteiras sempre porosas. Não bastasse, a violência e a crueldade são inerentes ao humano, logo não há distinções de classe, conta bancária ou herança prometida entre quem pode cometer barbaridades. É o horror praticado dentro de um desses condomínios luxuosos que está no centro de "Páradais" (Mundaréu, tradução de Heloisa Jahn), novo romance da mexicana Fernanda Melchor, mesma autora do primoroso "Temporada de Furacões".

Desde o início sabemos que a obsessão de Franco Andrade, o gordo, por Marián, mãe de um amigo do garoto e esposa de um astro da televisão, não terminará bem. Franco vive no luxuoso condomínio com os avós, que pensam em mandá-lo para uma academia militar em Puebla após o moleque ter sido expulso da escola onde estudava. Daqueles sujeitos que têm a certeza de que dinheiro e proteção parental podem lhe blindar de tudo, dá indícios de já ter o cérebro parcialmente derretido pelo álcool e pela pornografia.

São os cigarros fumados e os gorós tomados pelos cantos do condomínio na costa mexicana que aproximam Franco de Polo. E quem é Polo? "O rapaz, como o chamavam os moradores, isso é o que ele era. O aparador de grama, o podador de galhos, o recolhedor de merda, o lavador de carros alheios, o bobalhão que chegava correndo quando aqueles desgraçados o chamavam com um assobio: o criadinho. Como havia chegado naquele ponto em sua vida?, perguntava-se sem achar resposta. E como diabos se libertaria? Outra pergunta que ficava sem resposta".

Um funcionário e um morador metidos numa violenta presepada conduzirão toda a narrativa. É evidente o contraste entre a vida de Polo e a de Franco. Se este está abobalhado em suas superficialidades, aquele não sabe o que fazer para tomar as rédeas de seu destino. "E que caralho era aquilo de 'objetivo de vida'? Sempre deixava essa parte em branco porque não sabia que merda preencher ali". Assim que Polo, o grande personagem de "Páradais", portava-se diante de um formulário de solicitação de empregos.

Páradais, da mexicana Fernanda Melchor - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Polo é feio como uma bofetada na cara de Deus. Isso segundo a própria mãe, que o obrigara a trabalhar após ser reprovado em seis matérias na escola, jogando fora uma oportunidade rara em sua família. Sob pretexto de evitar que o garoto gastasse todo o dinheiro com álcool, a mulher confisca o salário do filho feito de capacho pelo patrão. Não bastassem os problemas domésticos e a falta de horizontes, a pele escura soa como mais uma adversidade para que Polo arrume alguma chance de melhorar sua vida. Certas características da pobreza também se assemelham em toda a América.

O desamparo e o abismo social são aspectos importantes do trabalho de Fernanda. Mas o que está mesmo no cerne de sua escrita é a miríade de violências que homens infligem contra as mulheres. Habitam a prosa da mexicana machões e machinhos que sempre desconfiam de suas companheiras ou atribuem ao sexo oposto a culpa pelas desgraças de suas vidas. São indivíduos que têm a certeza de poder fazer o que bem entendem com aquelas que desejam ou repudiam. Em "Páradais", essa virulência tão em voga na literatura latino-americana é outro elemento a aproximar rapazes de realidades bem diferentes.

A busca por certa liberdade que ninguém sabe exatamente o que é, a formação e a deformação dos desejos, o legado familiar como variável capaz de mudar destinos e a ambição em contraste com a necessidade da grana são traços marcantes deste trabalho de Fernanda. Bem como a força do imaginário e a perigosa falta de noção da distância que há entre a fantasia e o real. A autora é novamente bem-sucedida ao mergulhar no íntimo de jovens homens para investigar como uma série de influências díspares forjam a cultura machista e misógina na qual estamos metidos, com sujeitos que vivem entre o açoite e a vontade de açoitar.

E faz isso entregando mais uma vez um livro de linguagem furiosa, intensa, feito de parágrafos longuíssimos onde tons e vozes se alternam para narrar muito em pouco espaço. Fernanda exige fôlego e concentração do leitor, caso contrário muitos poderão se perder em suas páginas da mesma forma como seus personagens se perdem entre suas necessidades, revoltas, frustrações e desejos.

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