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Condé e Cárdenas: pegadas da escravidão e a descoberta do horror

As escritoras Maryse Condé e Teresa Cárdenas - Divulgação
As escritoras Maryse Condé e Teresa Cárdenas Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

23/01/2023 04h00

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"Eu não podia de maneira alguma apreender o universo funesto da plantação", escreve Maryse Condé num dos melhores momentos de "O Coração que Chora e que Ri". É a leitura de "La Rue Cases-Nègres", de Joseph Zobel, autor da Martinica, ilha irmã de Guadalupe, terra de Condé, que a desperta:

"De uma só vez caía sobre as minhas costas o peso da escravidão, do tráfico de escravos, da opressão colonial, da exploração do homem pelo homem, dos preconceitos de cor sobre os quais ninguém, com a exceção, às vezes, de Sandrino, nunca havia me falado. É claro que eu sabia que os Brancos não frequentavam os Negros. Contudo, atribuía isso, como meus pais, à burrice e à cegueira insondável deles".

O choque vivido na infância por Condé, também autora de "Eu, Tituba" e frequentemente apontada como possível vencedora do Nobel de Literatura, contrasta com o que encontramos nos contos de "Awon Baba", de Teresa Cárdenas, cubana que esteve na última edição da Flip. "O Coração que Chora e que Ri" e "Awon Baba" são obras que oferecem a chance de vislumbrar, por meio da literatura, percepções que nascem de distintas vivências para conflitos entre colonizadores, colonizados, escravizados e seus descendentes em diferentes ilhas da América Central.

Traduzido por Josane Silva e publicado pela Pallas, em "Awon Baba" Teresa Cárdenas recorre à ficção para construir breves narrativas sobre a experiência de escravizados em Cuba. Nos deparamos com uma história coletiva na qual pessoas retiradas a força de suas terras são desumanizadas em outro canto do mundo. Perdem seus nomes, são punidas por suas culturas enquanto o passado tenta ser apagado, numa violência que busca dominar até mesmo o imaginário dos açoitados.

"Pela memória indelével de nossos ancestrais?", registra Teresa na dedicatória da obra. Apesar de cheiros, sabores e vozes de griots terem ficado para trás, a ancestralidade será conceito fundamental num trabalho que em alguns momentos lembra a tensão África-América construída por Ana Maria Gonçalves em "Um Defeito de Cor". Cárdenas só poderia se apressar menos em alguns momentos; são diversas as camadas que mereciam ser exploradas com mais calma e profundidade pela cubana, que opta por contos ligeiros.

Figuras como Curundingo, a criança suja e abandonada que não foi amada, então virou um monstro, e os mitológicos guijes dão outros toques locais a "Awon Baba". Ainda há algo que remete a Cidinha da Silva em histórias marcadas pela brutalidade vivida em canaviais sufocantes, mas também permeadas por símbolos de luta pela liberdade. A arte, a beleza, os ritos e a memória emergem como fortalezas para que homens e mulheres não sucumbam.

Se nos contos da cubana as marcas da escravidão e do racismo saltam a cada página, nas memórias de Maryse, como já vimos, a descoberta do horror soa surpreendente, uma grande revelação. Traduzido por Heloisa Moreira e publicado pela Bazar do Tempo, em "O Coração que Chora e que Ri - Contos Verdadeiros da Minha Infância" a autora de Guadalupe, ilhota dominada pelos franceses, resgata momentos decisivos de quando era criança.

Livros de Teresa  Cárdenas e de Maryse Condé - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Bem jovem que Maryse começa a compreender o peso das palavras. Ao dizer suas verdades brutas demais, percebe como pode atingir severamente outras pessoas. Em textos curtos que às vezes pecam por repetições evitáveis e parágrafos pouco lapidados, encontramos vestígios do que viria a ser uma escritora. "Eu só estava bem quando inventava universos com a minha imaginação", registra sobre a criança que não aguentava ficar calada porque sempre tinha uma história para contar.

A sordidez infantil, as primeiras descobertas sexuais, as paixonites, as desilusões afetivas e o perigo de se aprender a viver por meio de livros toscos pontuam as lembranças de Condé. Nos atritos sociais e na conturbada relação com os pais - especialmente com a mãe - que estão os melhores momentos de "O Coração que Chora e que Ri".

Maryse é a caçula de oito irmãos. Nasceu e cresceu numa família com grana. Vivia numa boa casa em Pointe-à-Pitre, principal cidade guadalupense. Tinha empregadas que ajudaram a lhe criar e de tempos em tempos viajava para a França, passava férias em Paris. Para seus pais, a terra dos colonizadores era o melhor lugar do mundo. Aos poucos que a autora e narradora compreende que talvez vivesse entre gente que "quer ser o que não pode ser porque ela não gosta de ser o que é".

É uma constatação dura. Mas é a constatação possível ao sacar que na família havia medo de que os filhos falassem crioulo ou começassem a gostar de gwoka, música típica de Guadalupe. Naquela casa, apenas o europeu era sinônimo de qualidade, de requinte, de fineza. Não havia espaço para qualquer tipo de orgulho de heranças africanas. Enquanto projetavam máscaras para ocultar frustrações, a forma como ignoravam os problemas que existiam para além das esquinas mais próximas era uma consequência quase natural dessa postura.

Aos poucos Maryse mostra aos leitores como foi exposta a contradições, sacanagens e mazelas que resultam num emaranhado de males jamais resolvidos - e ainda alimentados por tantos. Ao crescer, começa a se deparar com a complexidade do mundo. Logo surge a desconfiança de que Paris talvez não seja a capital do universo. Joseph Zobel tem papel fundamental nesse processo, mostrando para a jovem o duro passado que conflui para os contos de Teresa Cárdenas.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL