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Enfant terrible, Houellebecq se despede com romance quase fofinho
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Desconfio da fama de profético. Encaro Michel Houellebecq como um observador atento a aspectos fundamentais e potencialmente catastróficos de nosso cotidiano. Se vez ou outra seus livros antecipam grandes tragédias, isso se deve à forma como constrói em sua ficção histórias levemente exacerbadas, coisa de um tom acima do que vemos hoje. Esse procedimento se repete em "Aniquilar", recém-lançado no Brasil pela Alfaguara (tradução de Ari Roitman).
As eleições francesas de 2027 estão, num primeiro momento, no centro da trama. A classe média do país sumiu. A ideia de ser uma "startup nation" foi meio que abandonada após o movimento gerar apenas "poucos empregos, precários e mal pagos, no limite da escravidão, em multinacionais incontroláveis". Grupos insurgentes e vertentes ideológicas excêntricas despontam enquanto o terrorismo atinge um patamar de ameaça global jamais visto.
Sob pressão para ser cada vez mais enxuto, o Estado míngua e serviços básicos são garroteados. Morosa demais, a democracia soa como um sistema moribundo, talvez morto. Longe de Paris, pequenas cidades interioranas seguem em enorme crise social. São lugares de raros empregos, onde, de geração em geração, boa parte dos filhos parece vir ao mundo para reproduzir a vida dos próprios pais. Sim, é um cenário próximo ao que encontramos em "O Lugar", de Annie Ernaux.
Enquanto adultos são infantilizados, não cabe mais qualquer tentativa de separar o real do virtual. Não surpreende que o jogo político esteja bem deteriorado e um sujeito famoso pelas cretinices feitas na televisão seja favorito à presidência. Como disse, é fácil notar: Houellebecq pega o hoje e o projeta no amanhã carregando um pouco mais nas cores aqui, fazendo alguma aposta ousada ali.
Paul Raison, protagonista de "Aniquilar", está imerso nas tensões políticas. Funcionário do Ministério da Economia e meio que braço direito do ministro Bruno Juge, nome forte para as eleições de 2027, Paul vive para o trabalho. Um fiapo de qualquer coisa mantém seu casamento, enquanto, num país onde assexuais se multiplicam, o sexo está petrificado no passado do personagem. O ocaso na cama destoa do que estamos acostumados a ver nos livros do francês.
Não que fique tranquilo com a própria derrocada. Angústias, incômodos e preocupações eclodem em sonhos atormentados. Paul, no entanto, é alguém que vive de lado, como lemos em certo momento. Há algo de "Stoner", de John Williams, na forma como esse sujeito de Houellebecq não mostra grandes forças para tomar as rédeas da própria vida.
Vida que começa a mudar quando o pai de Paul sofre um AVC, o que o leva a estadias cada vez mais longas no interior. Se reaproximar da madrasta e das irmãs soa como inevitável, num desdobramento que rende ao texto acenos a um certo status quo familiar conservador, que ainda se choca com a opção de alguém não ter filhos.
Diante da iminência da morte, como a velhice é tratada ganha atenção junto com a forma de lidarmos com o presente e a perspectiva de futuro. Com outras desgraças e também reconquistas íntimas a influenciar o jeito de tocar seus dias, Paul muda. Aos poucos a grande história, aquela feita de eleições e ameaças terroristas, fica de lado. Então a jornada de um homem e seus conflitos particulares se ergue diante do leitor. É com habilidade que Houellebecq migra Paul de figurante das grandes questões coletivas para se aproximar de algum protagonismo em seu pequeno universo.
O olhar raivoso contra os muçulmanos, o machismo, a crença na superioridade do Ocidente, o papinho de perseguição a cristãos, um improvável repúdio ao frango brasileiro... Traços polêmicos ou estúpidos caros aos livros de Houellebecq, e que se misturam com a imagem pública construída pelo escritor para si, estão presentes em "Aniquilar", mas de maneira bem mais contida do que vimos em outras de seus trabalhos.
É mesmo um romance que destoa um pouco do que estamos acostumados a receber do francês. Houellebecq, frequente favorito ao Nobel, promete: com "Aniquilar" coloca um ponto final em sua obra. "Felizmente cheguei a uma conclusão positiva; é hora de parar", escreve nos agradecimentos. Sendo assim, soa até irônico: dono de porradas como "Plataforma" e "Serotonina", o enfant terrible da literatura contemporânea encerra a própria caminhada com um livro reflexivo, algo terno, quase fofinho.
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