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Falência da Livraria Cultura: lembranças contrastam com calote e decadência

Livraria Cultura, em São Paulo - Paulo Fridman/Corbis via Getty Images
Livraria Cultura, em São Paulo Imagem: Paulo Fridman/Corbis via Getty Images

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

10/02/2023 12h45

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Livros da vida encontrados em prateleiras bem organizadas. Descobertas feitas em meio a leituras de pé, pelos corredores. A soneca em almofadas que acomodavam o corpo todo. O bom papo com vendedores que entendiam muito de literatura. O passeio com as crianças sempre finalizado com um sorvete. Palestras e autógrafos de alguns dos escritores favoritos. Paixonites ligeiras e amores gestados entre as estantes. A surpresa ao se deparar com o dragão pendurado na unidade mais famosa. Compreensível que a notícia da falência da Livraria Cultura deixe tanta gente consternada.

Não é preciso grande esforço para que a imagem pública de uma livraria seja positiva. Fora trogloditas, pessoas costumam gostar de espaços culturais, sentem-se bem neles. Some a isso certo ar sacralizado que ainda existe ao redor dos livros e é só não fazer muita besteira para que um comércio do tipo tenha boa aceitação. Ao juntar trabalho bem feito durante um bom tempo com boas doses de marketing, a Cultura virou referência, conquistou um lugar cativo no imaginário dos leitores.

Só que uma coisa é o comércio do balcão pra fora, outra é esse mesmo negócio do balcão pra dentro. Com o passar dos anos, a diferença entre a cara e as entranhas da Cultura ficou abissal.

O processo de crescimento fez a rede ser reconhecida em todo o Brasil. No auge, suas lojas ocupavam espaços em shoppings ou áreas importantes em diversas cidades do país. Entretanto, a lógica de uma empresa pequena que comercializa livros para pagar suas contas, como um dia foi a Cultura, é bem diferente da lógica de uma organização parruda, como virou a Cultura. Mudam os custos, mudam as formas de ganhar dinheiro, muda a perspectiva de quanto lucrar, muda o que se espera das planilhas. Muda tudo, inclusive a relação com o que se vende numa livraria.

Há muita, mas muita gente mesmo que lembra com saudosismo do bom tratamento de livreiros que realmente entendiam dos assuntos com os quais lidavam. Só que numa lógica de crescimento sobre crescimento, ter pessoas que conhecem livro e literatura trabalhando numa livraria pareceu ter se tornado algo dispensável. Quando tudo o que importa é determinada meta no final do mês, tanto faz se você vende Clarice, calendário de ursinhos ou parafusos.

Funcionários cada vez mais pressionados e sobrecarregados eram a parte exposta de uma engrenagem que começava a transparecer problemas. Com custos altíssimos e decisões estratégicas arriscadas, por assim dizer, adversidades começaram a se acumular. Mudanças profundas nas características do varejo ajudam, mas não dão conta de explicar todo o colapso. Há algo mais profundo aí, me parece. Algo que aproxima a falência da Cultura e a pindaíba da Saraiva ao que acontece hoje com redes como Americanas e Marisa.

E aí vem quem carrega lembranças nada ternas. Num modelo de negócio caquético, muitas editoras tiveram que engolir prejuízos astronômicos porque nunca viram o acerto de contas dos livros vendidos ou a devolução dos exemplares consignados pela Cultura. Ao determinar a falência da rede, o juiz citou em sua decisão que há indícios de fraude inclusive no processo de recuperação judicial. Histórias de calotes só não são mais frequentes do que as de funcionários massacrados pela derrocada.

Se antes da queda a imagem da Cultura era linda do balcão para fora, quando a coisa apertou, do balcão para dentro, muita gente e muitos outros negócios pagaram por decisões e erros alheios. Grandes editoras foram abaladas e pequenas casas, algumas delas responsáveis pelo que há de melhor hoje em nosso mercado editorial, tiveram que lidar com rombos inimagináveis, isso para não falar do restante da cadeia de fornecedores e profissionais contratados. Quando uma rede enorme dessas afunda, tende a puxar muita gente consigo.

Fecho com uma história pessoal. Certa vez, passei pela unidade da Paulista para comprar um livro da chilena Maria José Ferrada chamado "Kramp" (Moinhos). O atendente olhou no sistema e não achou nada, mas disse ter visto algo parecido numa caixa recém-aberta. Foi atrás e voltou com os diários de Franz Kafka. A impressão era que o gigante tcheco lhe era tão estranho quanto a pequena joia latino-americana, ambos meros nomes esquisitos.

Ali ficou claro que aquela Cultura eternizada nas melhores lembranças de muitos leitores já havia morrido, o que sobrava era só uma carcaça moribunda.

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