Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Afirma Pereira': arte e política em boa HQ baseada no livro de Tabucchi
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Após os ataques golpistas em Brasília, no começo de janeiro, escrevi sobre a leitura que então fazia de "Afirma Pereira", um dos grandes livros do italiano Antonio Tabucchi, também autor de obras como "Noturno Indiano" e "Dama de Porto Pim".
Contado em forma de depoimento, o romance publicado em 1994 traz a história de um editor do caderno de cultura de um jornal aliado à ditadura de Salazar.
Enquanto nazismo e fascismo crescem na Europa, cabe a Pereira levar às páginas uma arte que fuja de eventuais leituras politizadas. Ao mesmo tempo, superiores ocultam o horror que se espalha por Portugal. É sempre fascinante notar como clássicos servem de refúgio aparentemente seguro àqueles que não querem se envolver com as questões urgentes de seu tempo, seja por medo, indiferença ou pura canalhice.
Registrei: a forma de Pereira ignorar ou diminuir o terror ao seu redor me lembrava o jeito como muitos colegas jornalistas se portaram durante a ascensão da extrema direita no país. A leitura, porém, estava pela metade e já suspeitava que não seria aquela imagem do protagonista que se cristalizaria na minha mente.
Porque de cara o romance de Tabucchi nos apresenta um sujeito letárgico, apegado às dores do passado, mas depois o que temos é uma narrativa sobre o despertar para o esgoto em que está metido. É com maestria que o escritor italiano nos mostra como Pereira é tirado de sua pasmaceira e levado a agir, ainda que isso signifique se colocar em riscos. Se Tabucchi considerava seu trabalho uma peça otimista, esse otimismo está em constatarmos que desgraças batendo à porta podem levar pessoas a rever como se colocar no mundo.
Acerto as minhas contas com Pereira e aproveito para extrapolar o livro de Tabucchi, lido em tradução de Roberta Barni e edição da Estação Liberdade. Isso porque a Nemo lançou por aqui uma versão em HQ de "Afirma Pereira" feita pelo francês Pierre-Henry Gomont. Beleza de trabalho em termos de traços e cores, a adaptação saiu em 2016 e rendeu ao seu autor o Grande Prêmio RTL de Quadrinhos.
Há quem cobre fidelidade ao ver qualquer história transposta para uma arte diferente da sua versão original. Não faço esse tipo de exigência. Cada versão é uma peça independente, não deve pedir desculpas ou licenças artísticas. Os puristas, digamos assim, deverão ficar bem satisfeitos com o trabalho de Pierre sobre o texto de Tabucchi. Fora uma solução fantástica aqui, uma passagem acelerada ali, é uma HQ bem fiel ao romance. Não é virtude, tampouco é problema.
"Penso que a Alemanha e a Itália, isso é Europa. E a Europa é longe. Aqui, estamos em Portugal, eu que se passa por lá não nos diz respeito... A opinião pública é um truque inventado por esses idiotas dos americanos! Aqui somos do sul. E no sul, Pereira, obedecemos a quem grita mais. Sempre foi assim e sempre será!... Você não escreve sobre política, que eu saiba. Ocupe-se da página cultural", ouve Pereira durante um jantar com o seu chefe.
Como se escolhas artísticas não fossem também políticas.
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