Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A ioga e as desgraças da vida: a busca de Emmanuel Carrère pelo equilíbrio
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Pense no símbolo do yin-yang. Um círculo preto e branco. A parte escura contém um punhado de luz. A parte luminosa também carrega em si um tanto da escuridão. Há ali um perfeito equilíbrio entre tensões opostas caras a todos nós.
Soa como papo que descambará para a autoajuda, mas não é o caso. Como não é o caso no novo livro de Emmanuel Carrère, "Ioga" (Alfaguara, tradução de Mariana Delfini). Pode até rolar uma aproximação de tal tom em um momento ou outro da narrativa, mas o autor jamais perde a mão.
Responsável por títulos como "Um Romance Russo" e "Limonov", Carrère, hoje com 65 anos, é um dos nomes fundamentais da literatura francesa contemporânea. O Nobel para o qual é cotado há tempos deve ter ficado mais distante desde o ano passado, no entanto, quando Annie Ernaux, sua conterrânea e par na autoficção, levou o prêmio.
A fórmula que Carrère segue é familiar para quem acompanha esse tipo de literatura: parte de experiências próprias e tenta conectar a história íntima a questões caras a um público amplo. Para "Ioga", o atrito entre o que vive e o que leva para a literatura ganhou um capítulo que atrapalhou a escrita, assume: sua ex-mulher o proibiu de escrever a respeito dela e da filha que tiveram. Dá pano para boas discussões (que ficarão para outra hora).
A narrativa parte da ideia do autor escrever um livrinho simpático e perspicaz sobre ioga. No primeiro terço do volume, Carrère se dedica a relatar sua experiência de décadas com a prática milenar enquanto reconstrói os dias que passou num retiro bucólico com ares de seita. Bons momentos alternam com passagens que parecem exigir do leitor a mesma paciência que alguém precisa ter para ficar horas numa posição única, abstraindo do mundo e concentrando-se apenas no funcionamento do corpo.
Certa busca pela lentidão é uma das marcas do início de "Ioga". Ali parece estar a prova de que pasmaceira, autocuidado e paz interior não são os melhores combustíveis para a boa literatura. Pois é quando a vida do narrador e o mundo ao seu redor descambam que o livro cresce. O retiro enigmático e a ideia do livrinho simpático são atropelados pelo ataque terrorista ao Charlie Hebdo que joga a França num profundo luto coletivo e o narrador num luto particular.
Em seguida, uma forte depressão melancólica o leva para uma temporada de quatro meses internado sob cuidado de profissionais da saúde que buscam domar não só a sua vontade de morrer, mas de estar morto, de nunca ter existido. Essa luta contrastará com a perda do editor responsável por acompanhar o autor ao longo de toda a sua bem-sucedida carreira. O livro que titubeia enquanto o narrador se dedica ao momento da vida simbolizado pelo luminoso yin engrena quando é o yang que passa a dominar a história.
Numa das diversas passagens em que Carrère expõe o esqueleto do livro, uma boa chave para compreender o que temos em mãos: "Nas trevas, é vital se lembrar de que também vivemos na luz e que a luz não é menos verdadeira que as trevas. E tenho certeza de que isso pode ser um bom livro, um livro necessário, que conseguirá reunir os dois polos: uma aspiração longa à unidade, à luz, à empatia, e a poderosa atração oposta da divisão, do fechamento em si, do desespero".
Ainda há em "Ioga" uma importante camada sobre a crise de refugiados na Europa. É numa mistura de deslocamento para novas paisagens, sexo, arte e altruísmo que o narrador reencontra algum alívio para uma vida que, aparentemente, teria tudo para ser tranquila. Aí voltamos para o yin-yang, desta vez completo. "Ioga" é a busca de Carrère por esse equilíbrio sutil, espécie de utopia individual.
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