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OPINIÃO

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Pequeno Príncipe chega aos 80 anos como rei do povo gratiluz

Esboços de O Pequeno Príncipe feitos por Antoine de Saint-Exupéry - Handout / Stiftung für Kunst, Kultur und G / AFP
Esboços de O Pequeno Príncipe feitos por Antoine de Saint-Exupéry Imagem: Handout / Stiftung für Kunst, Kultur und G / AFP

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

12/04/2023 04h00

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"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas".

"O essencial é invisível aos olhos".

Tá, parei. Você também já cansou de trombar com essas frases por aí, eu sei. Recordo os clichês porque "O Pequeno Príncipe" completa agora 80 anos. Oito décadas de um livro que alcançou um grande feito: atravessou gerações oferecendo a adultos frases que parecem feitas sob medida para quem quer transparecer virtuosismo. De miss qualquer coisa do passado a coachs de LinkedIn e povo gratiluz do Instagram, todos vendem a imagem de ter descoberto um caminho afável, acolhedor, fofinho, bonitinho, empático, afetivamente responsável para a vida graças à história infantil.

Escrito e ilustrado pelo francês Antoine de Saint-Exupéry, também autor de "Voo Noturno" e "Piloto de Guerra", a obra apresenta um aviador que, após um acidente, é acordado pelo tal principezinho. O garoto, então, conduz o leitor por uma jornada em que encontros com plantas e animais acabam em diálogos que questionam valores e apresentam a terna visão de mundo do pequeno.

Há quem tenha considero perigosíssimos os invisíveis aos olhos daqui, responsabilidades eternas dali. Na Argentina, em 1980, o carniceiro Rafael Videla, então ditador a horrorizar o país, proibiu o livro. Temia as ideias subversivas que poderia plantar na mente das crianças. Não sei se Videla vislumbrou tantos marmanjos também se agarrando a meia dúzia de frases do sujeito.

Em 2015, quando o texto caiu em domínio público, fiz uma série de matérias sobre "O Pequeno Príncipe". Numa delas entrevistei Mônica Cristina Corrêa, especialista na obra e na vida de Saint-Exupéry. Na ocasião ela disse: "Muitos leitores se limitaram a repetir trechos do 'Pequeno Príncipe' como clichês de cartões de aniversário... É lamentável, mas é consequência do mundo em que vivemos, no qual o 'produto' se sobrepõe a tudo".

É a lógica do extrativismo destrambelhado. Pegue um livro. Fisgue frases lapidares, que parecem condensar grandes achados para a vida. Depois, sempre associe tal livro a esses poucos trechos pescados. Despreze qualquer complexidade que alguma leitura da obra poderia ter, o que importa são as mensagens estáticas, chapadas, cheias de certezas, meladas com boas intenções. Repita isso durante uma, duas, oito décadas. Está aí a fórmula ideal para desgastar um trabalho a ponto de parcela considerável dos leitores bocejar ou virar os olhos assim que o vê.

Em "O Visconde Partido ao Meio", o italiano Italo Calvino (Companhia das Letras) narra a história de um visconde que, ao ir para a guerra, toma um balaço no meio do corpo. Numa dessas delícias permitidas pela literatura, suas metades seguem vivas, e com personalidades diametralmente opostas: uma é extremamente malvada, a outra, de uma bondade inigualável. Quem leu o livro sabe: os moradores do vilarejo governado pelo homem rachado odeiam os tormentos impostos por um dos lados, mas também não suportam ter por perto a metade que vive a despejar boas intenções.

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