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Salvar o Fogo: novo livro de Itamar Vieira Junior parece outro Torto Arado

Autor do best-seller Torto Arado, Itamar Vieira Junior acaba de lançar Salvar o Fogo - Renato Parada
Autor do best-seller Torto Arado, Itamar Vieira Junior acaba de lançar Salvar o Fogo Imagem: Renato Parada

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

21/04/2023 04h00

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Itamar Vieira Junior alcançou um feito raro em nossa literatura. Fez enorme sucesso de público ao mesmo tempo em que conquistou distinções importantes com uma história bem trabalhada sobre elos fraternos, servidão e luta pela terra. "Torto Arado" (Todavia) chegou aos leitores em 2019 após vencer o Prêmio Leya. No ano seguinte levou o Oceanos e o Jabuti na categoria Romance Literário. Vendeu mais de 700 mil exemplares desde então.

Depois veio "Doramar ou A Odisseia", livro de contos publicado em 2021 que saiu bem, 72 mil exemplares, mas fez um baralho ínfimo perto do que "Torto Arado" ainda causa. Agora, na próxima semana, chegará às livrarias um novo romance de Itamar. Com 37 mil exemplares já garantidos por leitores na pré-venda, "Salvar o Fogo" é um dos lançamentos mais importantes do mercado editorial brasileiro em 2023.

Uma família fraturada, marcada por silêncios, que está no centro de "Salvar o Fogo", ambientado em Tapera do Paraguaçu, no interior da Bahia. Numa história que atravessa décadas e toca os anos dos cartões telefônicos, encontramos uma comunidade onde descendentes de negros e indígenas vivem sob a mão pesada da Igreja católica, por ali desde o século 17. São aspectos que levam o leitor a mais uma narrativa sobre disputas de terra, imposições culturais e lutas travadas entre forças desproporcionais.

Homens desencantados e certa fantasmagoria - antecipada pelo nome do mexicano Juan Rulfo, autor do incontornável "Pedro Páramo", numa das epígrafes - aparecem como traços de um universo místico, onde uma mulher teria o poder de controlar o fogo. Fogo usado de forma semelhante ao que ainda vemos pelo Brasil: como arma de destruição ou de acossamento na manipulação e disputa de territórios.

Salvar o Fogo, novo romance de Itamar Vieira Junior - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Numa dualidade entre potências elementares, as chamas contrastam com o correr do Paraguaçu que banha o povoado. Ao longo de "Salvar o Fogo" não é incomum toparmos com imagens desgastadas relacionadas à natureza. As lágrimas que vêm como um rio, por exemplo.

Por supostamente controlar as chamas que Luzia é chamada de bruxa, feiticeira, amaldiçoada pela comunidade. É Luzia quem cuida do inquieto Moisés desde seu nascimento. Conectados pelo sangue e pela convivência cheia de rusgas, ambos são pilares desse novo livro de Itamar, que de novo aposta na multiplicidade de narradores.

Certos saberes não são mais bem-vindos (ou bem-vistos) na Tapera. Os conhecimentos, crenças e as tradições dos povos originários foram sufocados pelas certezas da Igreja, pelos costumes das novas épocas. "Salvar o Fogo" é feito de diferentes formas de violência, de ganância, de doses de vingança e de bastante sacanagem contra quem já tem muito pouco.

Num mundo de conflitos tão caros à formação do Brasil, às vezes esbarramos em personagens que se explicam demais. Em outras situações, Itamar pesa a mão para mostrar ao leitor do lado de quem ele deve estar numa trama a respeito dos constantes embates da colonização. Esta que, vez ou outra, troca de roupa, ganha novos atores e segue a sua marcha para surripiar, tomar, dominar.

Há muito de "Torto Arado" em "Salvar o Fogo". A conflagração, o perfil dos personagens, a estrutura da narrativa, o transcorrer do tempo... Mas não só. O romance também é marcado pela cumplicidade, pelo carinho entre violentadas, pela força transformadora das mulheres, pela resiliência de laços afetivos, pelo poder da educação. A indissociabilidade entre o real, o mítico e o fantástico, bem como a presença de estrelas do trabalho anterior, completam o pacote de similaridades.

Não tem jeito. Um livro tão celebrado quanto "Torto Arado" sempre faz com que o artista passe a ser confrontado com seu grande sucesso. É injusto? Creio que sim. Expectativas sempre são terríveis para qualquer obra, ainda mais quando o autor busca trilhar novos caminhos.

Em todo caso, não parece ter sido esse o caso de Itamar. "Salvar o Fogo", em algumas ocasiões apontado como segundo volume de uma trilogia iniciada com "Torto Arado", é uma espécie de irmão mais novo deste, um reflexo levemente difuso no espelho, um livro com jeitão de mais do mesmo.

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