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A história real de um náufrago perdido nas lutas entre indígenas e europeus

Cena de Náufrago Morris, HQ de Pablo Franco e Lautaro Fiszman - Reprodução
Cena de Náufrago Morris, HQ de Pablo Franco e Lautaro Fiszman Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

24/04/2023 04h00

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Pintado no final do século 19 por Ángel Della Valle, o quadro "La Vuelta del Malón" foi pensado para representar a selvageria indígena numa época em que comunidades originárias do território argentino quebravam o pau contra europeus. Visto com os olhos de hoje, no entanto, a pintura talvez possa ser encarada como um aceno à braveza de povos que defendiam seu canto no mundo em meio a um longo processo de colonização marcado por guerras e traições.

De certa forma, "As Aventuras da China Iron", ótimo romance de Gabriela Cabezón Cámara (Moinhos), imagina o trilhar de um outro caminho para aquela época de tanto sangue, tanta bestialidade, ao reelaborar o destino do gaúcho Martín Fierro. O personagem, vivo em versos de José Hernandez, tem um papel central no processo de formação da identidade nacional argentina.

Os embates entre diversos povos indígenas e diferentes colonizadores europeus, bem como as possíveis formas de se retratar essas lutas, vieram à cabeça enquanto lia "Náufrago Morris", do roteirista Pablo Franco e do desenhista e pintor Lautaro Fizsman, ambos argentinos. A obra venceu o 1º Prêmio Latino-Americano de Quadrinhos, realizado em 2022 pelas editoras Historieteca e Loco Rabia, ambas da Argentina, iLatina, da França, e Comix Zone, brasileira que agora publica o volume com tradução de Fernando Paz.

"Náufrago Moris" é baseado numa história real. Isaac Morris tripulava uma fragata da Marinha Real Britânica que andava por esses cantos do mundo para contornar o sul argentino, margear o Chile e chegar ali pelo Peru, onde atacariam inimigos espanhóis. O mar, no entanto, foi mais forte. Morris foi um dos únicos sobreviventes do naufrágio que aconteceu na costa da Patagônia em 1741.

Náufrago Morris, HQ de Pablo Franco e Lautaro Fiszman - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

E sobreviveu sabe-se lá como. Numa natureza inóspita, lutou contra o frio e precisou matar até cachorros amigos para ter o que comer. Conseguia seguir enquanto colegas caíam. Deu sorte. Se salvou de ataques indígenas e foi acolhido por um desses povos. Um não, alguns. Virou mercadoria em trocas pouco valorosas e foi feito de escravo. Comprado por europeus, conseguiu regressar ao Velho Mundo, mas não sem antes de ter o couro esfolado pelos conterrâneos.

A saga do sujeito chama a atenção, mas o périplo pessoal não é o principal trunfo de "Náufrago Morris". É por meio da busca do cara pela sobrevivência que, aos poucos, conhecemos cenários e compreendemos as disputas que estavam em jogo naquele território em meados do século 18, cerca de um século antes da publicação do poema de Martín Fierro ou da pintura do quadro de Della Valle.

O emaranhado de articulações, alianças e interesses dos povos indígenas, bem como a sanguinolência e as sacanagens de ingleses e espanhóis, despontam enquanto somos colocados em contato com hábitos da época. E tudo isso abrilhantado por uma arte impressionante, capaz de fazer com que o leitor se sinta diminuído pela imposição da natureza ou acossado diante de situações inóspitas.

De fato, a primeira coisa que chama a atenção nas páginas de "Náufrago Morris" são as pinturas de rara beleza. É uma HQ em que cada quadrinho talvez seja uma obra de arte que já valha por si só.

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