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Diante da morte: fiapo familiar e o remendo na história com o pai ausente

A Morte de Géricault - Pintura de Ary Scheffer
A Morte de Géricault Imagem: Pintura de Ary Scheffer

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

08/05/2023 04h00

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"Como veio ele parar aqui, neste hospital, sem mais nem menos? O que faz ele aqui, acompanhando o homem que ali dorme plácido com a cabeçorra sobre o antebraço? Que homem é esse a quem ele quase desconhece, de quem ele viveu apartado por quase toda a vida, e, no entanto, dizem ser o seu pai? Um pai do qual se lembrava apenas no dia exato do seu aniversário, quando atendia um telefonema que por anos foi quase o mesmo, compondo-se sempre do mesmo discurso mecânico e cristalizado".

Em "O Ano do Pensamento Mágico", um de seus grandes livros, Joan Didion delineia o momento em que a vida capota. Ouve um baque enquanto prepara o jantar. Ao ver o que aconteceu, encontra o marido caído. Morto. Uma morte repentina, inesperada. É naquele instante que tudo muda para Didion. Na obra publicada por aqui pela Harper Coolins, tradução de Marina Vargas, a autora analisa a perda e as diversas formas de se viver o luto.

É um telefonema que altera o cotidiano de Antônio. O pai, que não via há mais de quinze anos e com quem só tinha contatos mecânicos a cada aniversário, liga para pedir ajuda. Sofre com as hemorroidas, desconfia. Cabe ao filho viajar até Lorena, cidade paulista no pé da Serra da Mantiqueira, para levá-lo ao hospital de onde não sairá mais.

A história de "Doze Dias", do cearense Tiago Feijó, publicada pela Sul, Sol e Sal em Portugal e pela Penalux no Brasil, transcorre enquanto o luto começa a ser gestado, num processo que se arrasta por quase duas semanas. Nesse tempo, Antônio reestabelecerá algum vínculo com o pai ausente por década e meia. Raul é um homem carinhoso com as plantas e apaixonado pelo Palmeiras. É também um beberrão mulherengo afeito a demonstrações de virilidade na frente de outros machos, um homem que passou a vida trucidando relações e atropelando sentimentos.

Doze Dias, romance de Tiago Feijó - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Em "Pai, Pai", publicado pela Alfaguara em 2017, João Silvério Trevisan reconstrói a tempestuosa relação com o homem que tudo o que lhe "deu foi um espermatozoide". Em "Doze Dias" também teremos a elaboração de uma história cheia de feridas, mas de alguma forma sustentada por um fiozinho de laço familiar. Um fiapo que, apesar do imenso desgaste, parece jamais romper por completo. A indiferença de outrora se dissipa enquanto Antônio nota o iminente fim de Raul.

Surge, então, o ímpeto de compreender o que se passou enquanto estiveram distantes, numa narrativa com camadas redentoras, mas também com possíveis ares de vingança ou revanche. A dramaticidade de "Doze Dias" faz com que o livro não perca força nem quando recursos óbvios são utilizados (o casal que se dá muito bem contrastando com o moribundo quase desamparado, por exemplo) ou caminhos que destoam demais do conjunto do texto são tomados. "A covardia foi a máscara que mais utilizei na vida, foi a minha companheira inseparável", assume o doente num momento de improvável lucidez e estranha verborragia.

Em 2021, "Doze Dias" valeu a Tiago o Prêmio Literário Manuel Gomes Teixeira. Li a edição portuguesa do romance, com suas "equipas" e mesóclises. É papo para outra hora, mas registro: impressionante como parte dos portugueses parece ter verdadeiro pavor ao PT-BR. A edição da Penalux está aí para que todos conheçam o autor em sua própria dicção. Fato é: ler o texto publicado pela Sul, Sol e Sal certamente reforçou o ar samaguiano de um narrador forte, de presença marcante, que mistura curiosidade e incredulidade diante do mundo. Tiago, diga-se, poderia confiar mais no que as próprias cenas já são capazes de transmitir.

Sim, há arestas em "Doze Dias". Essas arestas, contudo, chamam menos atenção do que as virtudes do romance de arquitetura ousada e bem resolvida. Acompanhamos o drama de Raul e Antônio em capítulos que vão e vêm no tempo. A alternância nada lógica dos dias transmite a turbulência, as dúvidas com o rumo da vida e o desnorteio do duro momento atravessado por pai e filho. O trabalho mostra que Tiago Feijó, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 com "Diário da Casa Arruinada" (Penalux), é um nome que merece ser observado.

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