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Pulitzer para argentino que escreve em inglês e os disfarces de um autor

O escritor argentino Hernan Diaz, que venceu o Pulitzer com o romance Confiança - Jason Fulford
O escritor argentino Hernan Diaz, que venceu o Pulitzer com o romance Confiança Imagem: Jason Fulford

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

15/05/2023 04h00

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Um dos principais prêmios literários de língua inglesa, o Pulitzer de Ficção deste ano foi para Hernan Diaz, argentino que pequeno se mudou com os pais para a Suécia e, na juventude, foi viver nos Estados Unidos. Hoje o autor tem 50 anos e escreve em inglês. Dividido com a estadunidense Barbara Kingsolver, autora de "Demon Copperhead", o Pulitzer para Diaz é mais uma peça para compreendermos o quanto as fronteiras da literatura podem ser fluídas.

Diaz levou o prêmio pelo seu segundo romance, "Trust", publicado aqui no Brasil pela Intrínseca como "Confiança" (tradução de Marcello Lino). "In The Distance", romance anterior do escritor lançado em 2017, também chegou à final do Pulitzer, além de ter recebido outros reconhecimentos pelos Estados Unidos.

"Confiança" é uma ficção fragmentada que apresenta múltiplas visões sobre o universo financeiro norte-americano nos primeiros anos do século 20. As frequentes comparações com "O Grande Gatsby", clássico de Scott Fitzgerald, dão uma ideia do que o leitor pode encontrar na obra. O colega José Godoy trouxe a sua visão sobre o romance no Clube do Livro.

Diaz escreve em inglês e acaba de vencer um importante prêmio literário com uma história, ao que parece, profundamente ligada aos Estados Unidos. De cara, não me soaria absurdo encará-lo como autor estadunidense nascido na Argentina, caso semelhante à grande autora brasileira que, quase por acaso, veio ao mundo na Ucrânia. Falo, claro, de Clarice Lispector.

Mas a formação cultural de Diaz deixa esse jogo mais aberto. Em recente entrevista para O Globo, comentou já ter se dedicado a obras de Clarice e Machado de Assis. Mais do que isso, apontou os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, exponentes da poesia concreta, como responsáveis por lhe ensinar a importância da forma ao escrever.

O destaque do trabalho não ficcional de Hernan é o livro "Borges, Between History and Eternity", ensaio sobre o conterrâneo Jorge Luis Borges. Há mais sobre as proximidades do autor com a Argentina no papo, em espanhol, que o agora premiado bateu com Hinde Pomeranic no podcast Vidas Prestadas.

Há muitas literaturas em confluência com a América Latina que acontecem para além do Rio Bravo. Exemplo disso é a Chicano Literature, corrente que ganhou corpo a partir da metade do século passado e abarca obras profundamente marcadas pela presença de mexicanos e de seus descendentes nos Estados Unidos. "A Casa na Rua Mango", de Sandra Cisneros (Dublinense, tradução de Natalia Borges Polesso), é uma boa referência dessa literatura.

A colombiana Juliana Delgado Lopera, que vive no país norte-americano desde os 15 anos, segue linha semelhante em sua ficção. Escrito num inglês permeado pela língua espanhola, "Febre Tropical" (Instante, tradução de Natalia Borges Polesso) é um retrato de parte da comunidade formada por imigrantes latino-americanos em Miami.

Penso ainda no New Latino Boom, movimento literário de escritores que escrevem em espanhol e vivem na terra de Cormac McCarthy. Faz parte dele a boliviana Giovanna Rivero, autora de "Terra Fresca da Sua Tumba" (Incompleta/ Jandaíra, tradução de Laura Del Rey).

Outro a bagunçar fronteiras rígidas demais para a arte é o guatemalteco Eduardo Halfon, cuja história também se liga aos Estados Unidos. Um trecho de "Canción", romance de Halfon publicado pela Mundaréu, tradução de Joca Reiners Terron, é uma boa amostra de quão múltipla pode ser a identidade de um autor:

"Estava no Japão para participar de um congresso de escritores libaneses. Ao receber o convite algumas semanas atrás, e depois de lê-lo e relê-lo até me certificar de que não era um erro ou uma piada, abri o guarda-roupa e encontrei ali o disfarce de libanês - entre meus tantos disfarces - herdado do meu avô paterno, nascido em Beirute. Nunca tinha estado no Japão. E nunca me haviam pedido para ser um escritor libanês. Escritor judeu, sim. Escritor guatemalteco, claro. Escritor latino-americano, evidentemente. Escritor centro-americano, cada vez menos. Escritor estadunidense, cada vez mais. Escritor espanhol, quando foi preferível viajar com esse passaporte. Escritor polaco, em uma ocasião, numa livraria de Barcelona que insistia - e insiste - em colocar meus livros na prateleira de literatura polaca. Escritor francês, desde que vivi um tempo em Paris e alguns ainda supõem que continuo por lá. Mantenho todos esses disfarces sempre à mão, bem engomados e pendurados no guarda-roupa. Mas nunca tinham me convidado para participar de algo como escritor libanês. E não me pareceu nada de mais ter de me fazer de árabe por um dia, num congresso da Universidade de Tóquio, se isso me permitisse conhecer o país".

Fácil notar: Hernan Diaz, agora vencedor do Pulitzer, não é caso isolado nessa questão cheia de possibilidades.

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Errata: este conteúdo foi atualizado
O livro de Barbara Kingsolver vencedor do Pulitzer se chama "Demon Copperhead", não Copperfield, como constava em versão anterior deste texto. O erro foi corrigido.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL