Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bartleby e as histórias sobre 'ninguém': o novo livro de Gay Talese
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Gay Talese está encanado.
Os jornalistas de hoje "não têm a sensação de que estão no reino dos artistas. Sempre pensei que um jornalista, no rol de escritor de não ficção, deveria ser um artista, como um poeta, um romancista, um dramaturgo. Por que não? Se escreve com beleza, com perspicácia, há uma certa forma de reconhecer esse mérito artístico. Hoje não vejo como os jovens jornalistas poderiam experimentar o orgulho que eu e meus contemporâneos experimentamos cinquenta anos atrás. Tom Wolfe, Joan Didion, Norman Mailer [...]. Todos éramos escritores. Trabalhávamos para um jornal, uma revista. Tínhamos alguma estatura, algum orgulho, alguma imagem, um estilo reconhecível. Estilo...".
Graças a esse estilo que Talese arrumou um espaço entre os grandes da literatura no século 20. Um dos gigantes da não ficção, revelou os bastidores do New York Times em "O Reino e o Poder", retratou as mudanças comportamentais e sexuais dos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70 em "A Mulher do Próximo" e expôs entranhas da máfia em "Os Honrados Mafiosos". Com esse título, depois republicado por aqui pela Companhia das Letras como "Honra Teu Pai", que Talese me conquistou.
Junto com gente como o Ryszard Kapuscinski e Eliane Brum, Talese é um dos maiores culpados pela minha escolha de estudar o entrelaçamento entre jornalismo e literatura. Lembro-me bem de quando ele veio para a Flip de 2009. Tentei me programar para ir pela primeira vez para a Festa. Queria ver de perto o autor de "Fama e Anonimato", livro no qual reúne reportagens memoráveis e perfis célebres, como o que escreveu sobre Frank Sinatra. No final, faltou grana para ida a Paraty.
Não que importe muito. Avistá-lo metido num terno bem alinhado e talvez ter sua assinatura em algum livro não mudariam em nada a admiração que tenho pelo cara. Não digo que tudo é imperdível, não é isso. O insosso "Vida de Escritor" e o nebuloso "O Voyeur" estão aquém dos outros mencionados. Independente de oscilações, saber que Talese vai lançar algo novo é sempre um motivo para criar boas expectativas.
É o que acontecerá no segundo semestre, quando chegará às livrarias (dos Estados Unidos, por ora) "Bartleby and Me" (Harper Collins). Criado por Herman Melville, mesmo autor de "Moby Dick", o icônico Bartleby é um escrivão que permanece prostrado, firma-se numa tranquila e, ao mesmo tempo, incisiva paralisia diante das ordens que recebe no escritório onde trabalha em Wall Street. "Prefiro não fazer", repete a cada exigência.
Um personagem decidido a negar o que lhe é imposto em diálogo com o escritor que, a princípio, nada sabe sobre as milhares de pessoas que cruzam seu caminho no dia a dia. Na obra Talese seguirá com uma de suas facetas mais admiráveis: retratar aqueles que raramente merecem o olhar atento e profundo de outros jornalistas: porteiros, motoristas, vendedores de lojas...
"Quando era um jovem jornalista, aos vinte e um, vinte e dois anos, decidi escrever sobre ninguém. Nas notícias se escreve sobre um político, um herói esportivo, uma estrela do cinema, um líder empresarial. Escreve-se sobre alguém. Eu queria escrever sobre ninguém, como Bartleby. E escrevi 'Bartleby and Me' com todos os Bartlebies que conheci". É o que Talese diz num bom perfil escrito pela chilena Muriel Alarcón e publicado no início do mês pela revista Gatopardo, de onde retirei as aspas do segundo parágrafo desta coluna.
Talese dispensa relações superficiais, diz, não tem celular e nem supõe o que seja ChatGPT. Orgulhoso da carreira trilhada, recomenda que novos jornalistas leiam principalmente ficção, grandes autores como Proust, Hemingway, Scott Fitzgerald, James Baldwin e Simone de Beavoir, elenca. Também comemora ter encontrado quem, ao longo da vida, considerasse seu trabalho digno de ser publicado.
É bonita a forma como Talese compartilha com Muriel o que a idade lhe proporciona numa época e num país que considera desprovidos de espaço para ambiguidades, titubeios. "O ponto de vista agora é que tem que ser isso, isso, isso. Tudo muito correto. Está tudo muito, muito cancelado. Se não publica o que a maioria quer, perde seu trabalho...". Depois da queixa, completa à jornalista: aos 91 já não tem que escutar ninguém, pois os dias na terra estão contados. "Isso é bastante libertador".
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