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OPINIÃO

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Arte sem manual: o privilégio de viver no mesmo mundo em que Laerte vive

A cartunista Laerte - Rafael Roncato/UOL
A cartunista Laerte Imagem: Rafael Roncato/UOL

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

24/05/2023 04h00

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Já faz mais de mês: sempre que Laerte posta uma nova tirinha no Twitter, muita gente comenta a arte com memes. Brincam principalmente com quadrinhos nos quais nem tudo está dado, em que a mensagem não está escancarada. São histórias que exigem do leitor certo esforço, reflexão para criar sua própria interpretação para algo subjetivo. Uma atenção estranha às redes.

O trabalho de Laerte é permeado por camadas políticas. Em alguns casos o recado é direto, claro como um punho em riste, um protesto, uma manifestação cristalina. Em outros, no entanto, a artista nos ganha pela sutileza, pelos silêncios, às vezes certa melancolia. Impressiona por oferecer múltiplos caminhos em poucos quadros, pela maneira como insinua uma história a ser criada também com a contribuição do leitor.

"A Noite dos Palhaços Mudos" se encaixa nesse segundo tipo de quadrinho. Publicada em julho de 1987 na Circo, revista importante para a caminhada das HQs no Brasil, a história está novamente à disposição dos leitores pela coleção HQs Para Todos, da Conrad. A ideia do projeto é, em tempo de álbuns que beiram ou ultrapassam os três dígitos, colocar no mercado gibis a preços amigáveis (R$ 9,90 os em preto e branco, como este de Laerte, e R$ 14,90 os coloridos).

Em "A Noite dos Palhaços Mudos", uma dupla de palhaços se infiltra numa reunião de homens engravatados e sérios demais, ávidos por acabar com a palhaçada silenciosa. Enxergam nos comediantes que nada dizem uma ameaça às bases da sociedade, da religião e das famílias. Trucidar um desses bufões pode servir de exemplo para que outros fiquem intimidados. Exterminar os palhaços e enquadrar o mundo são obsessões dessa gente.

A Noite dos Palhaços Mudos, de Laerte - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Os palhaços mudos não abrem a boca. Passam mensagens por meio de cenas humoradas que remetem a desenhos animados antigos. Publicada pouco depois da redemocratização do país, não é difícil de enxergar na HQ elementos que nos fazem pensar sobre a censura, as formas de rasgar mordaças e de como sagacidade e certa ironia podem ser importantes ferramentas para combater brucutus.

Lançado originalmente em 1994 no fanzine Cachalote, "A Volta dos Palhaços Mudos" também faz parte do volume publicado pela Conrad. Nesse desdobramento da história, a trupe segue com seu silencioso auê que contrasta com uma vida sisuda, burocratizada. Como em Murilo Rubião, coisas excepcionais parecem se esfregar na cara de uns e de outros, que simplesmente as desprezam por estarem tomados pela rotina, pelo olhar viciado em problemas.

Seja nessas histórias das décadas de 1980 e 1990, seja em tiras recém-publicadas, Laerte tem uma fantástica capacidade de entreter e comover enquanto exige do nosso cérebro, mexe com subjetividades, nos coloca para refletir. Seus quadrinhos nos lembram que a boa arte não vem com manual de instruções. É um grande privilégio viver na mesma época, no mesmo mundo, e poder acompanhar o trabalho de uma artista gigante como Laerte.

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