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Alavancado pelo BTS, Amêndoas é um livro inseguro sobre o mundo apático

Ilustração da capa de Amêndoas, de Yonghui Qio Pan - Reprodução
Ilustração da capa de Amêndoas, de Yonghui Qio Pan Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

29/05/2023 04h00

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O romance nem começa e já temos explicações: tal cara se trata de um personagem fictício, a autora quis construir uma história que tenha a ver com a alexitimia, condição que impede a pessoa de identificar e expressar sentimentos... Lida a última linha da ficção, antes de esgotarmos o volume, mais justificativas: quis contar uma história que mostrasse que é o amor que faz de alguém um bom ser humano, registra a escritora.

Vivemos tempos de literatura explicada demais, tutelada, preocupada em entregar ao leitor todos os elementos para que ele compreenda uma história sem precisar fazer grandes esforços nem ficar encucado com pontos nebulosos. Até notas explicativas têm pintado em trabalhos contemporâneos. "Amêndoas", livro de estreia da diretora de cinema Won-pyung Sohn, da Coreia do Sul, segue essa toada.

A obra acaba de sair no Brasil pela Rocco, com tradução de Yonghui Qio Pan. Chega no país algum tempo depois de "viralizar" por outros cantos. Em 2021, dois integrantes do BTS, grupo pop sul-coreano, apareceram num programa de televisão com o romance em mãos. Foi o suficiente para que leitores de diversos cantos do mundo catapultassem as vendas do livro. Por aqui, enquanto escrevo, o título aparece de forma tímida na categoria infantojuvenil das listas de mais vendidos do Publishnews e da Veja.

Chamado de monstrinho, é Yunjae que sofre do tal problema neurológico logo escancarado. Sua mãe e sua avó, com quem convive, tentam lhe ensinar a, na falta de reações espontâneas, pelo menos emular alguma tristeza, alegria, satisfação, surpresa, forçar um sorriso quando convém, quando as relações sociais exigem. Se não sabe o que fazer, que imite os gestos dos outros.

A vida de Yunjae capota aos 16 anos. Após um atentato que mata a avó e deixa a mãe em coma, o jovem se aproxima de Gon, problemático colega da escola, outro com laços familiares rompidos.

Capa de Amêndoas, de Won-pyung Sohn - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Na narrativa, Gon funciona como uma espécie de duplo de Yunjae. Se um é apático e reflexivo, o outro é impositivo e impetuoso, um bate e o outro apanha, um grita e o outro abaixa a cabeça. Numa história previsível, não causa surpresa que aos poucos uma amizade se construa e um passe a escutar o outro, um passe a se preocupar com os sentimentos do outro.

A trama construída por Won-pyung é marcada por episódios de violência, com a autora parecendo sempre tomar o cuidado de não chocar de verdade o leitor. Riscos não fazem parte dessa literatura.

Yunjae nasceu órfão de pai, morto por um motoqueiro bêbado enquanto trabalhava. Espancamentos pontuam momentos importantes da narrativa. E, na véspera do Natal, mãe e avó do protagonista são vitimadas num grande ataque desembestado por um homem frustrado afeito a livros sobre sucesso e hábitos positivos. Interessante observar como a sociedade sul-coreana vem sendo representada pela própria arte.

Narrado por Yunjae, entre encadeamentos apressados e passagens pouco críveis, "Amêndoas" ganha contornos especialmente melosos quando o personagem começa a demonstrar incredulidade com o mundo. Como pode tantos homens e mulheres, sem ter o mesmo problema que ele, permanecerem prostrados, indiferentes aos males que acontecem? Como uma pessoa sã toca normalmente a sua vida, as miudezas da rotina, enquanto outros são massacrados?

É a história de um garoto diagnosticado com alexitimia e que sofre pela apatia generalizada de quem está ao seu redor. Surpreende que essa camada não esteja reforçada também na introdução, num texto paralelo da autora ou, de repente, numa nota de rodapé.

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