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Maternidades arruinadas e o fantasma de um filho desaparecido

Brenda Navarro, autora de Casas Vazias. - Arquivo
Brenda Navarro, autora de Casas Vazias. Imagem: Arquivo

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

05/06/2023 04h00

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É interessante o momento da literatura mexicana no Brasil - e escrevi a respeito disso aqui. Pelo menos três obras que tratam da maternidade escritas por autoras do país ao norte chegaram às livrarias brasileiras nos últimos meses. "A Filha Única", de Guadalupe Nettel, saiu pela Todavia. "Linea Nigra", de Jazmina Barrera, foi editada pela Moinhos. E "Casas Vazias", de Brenda Navarro, chegou até nós pela Dublinense. Esse terceiro me fisgou.

Daniel desapareceu aos três anos. A última vez que sua mãe o viu foi enquanto estava entre a gangorra e o escorregador do parque em que iam todas as tardes. A mulher retornará diversas vezes ao lugar para se sentar no mesmo banco e tentar reconstruir o que aconteceu, observar se não deixou escapar algum detalhe escondido num canto da memória.

É a partir do drama dessa mãe que perde o seu filho que começamos a desbravar "Casas Vazias", traduzido para o português por Livia Deorsola (tem papo com ela no podcast). Inominada, a personagem não queria ter filhos e, mesmo com a cria, busca se afastar dos mitos da maternidade. Apesar disso, são intensos o desespero e a culpa após perder Daniel. Razões, desejos e emoções se misturam e se chocam entre ideias e sentimentos muitas vezes contraditórios.

Daniel não foi a única criança que entrou na vida dessa mãe acidental. A personagem vive com seu companheiro, o espanhol Fran, e Nagore, criança acolhida por Fran, seu tio, depois que a mãe foi assassinada pelo marido. A relação conflituosa com Nagore trará outra camada para a vida da mulher transformada pela "maternidade não requerida".

A mãe não nomeada é uma das vozes a narrar a história de "Casas Vazias", romance pontuado por versos de Wislawa Szymborska, polonesa vencedora do Nobel de 1996. "Vietnã", um dos poemas usados por Brenda, é uma das grandes representações da maternidade na literatura. Nele, ao ser interrogada, uma moça diz não saber de nada. Como se chama? Não sei. Onde nasceu, de onde vem, de que lado está na guerra? Não sei. Até a virada: "Esses são teus filhos? - São".

Seria possível negar um filho? E se apropriar de uma criança para fazer dela sua cria? A outra voz a compor romance é a de uma mulher com características bem diferentes da primeira. Alguém que sempre sonhou em ter filhos, não via muito sentido em ir para a cama com algum homem sem ter a procriação em mente e se frustra a cada vez que o companheiro tira o corpo fora dessa obsessão por um bebê.

Casas Vazias, romance da mexicana Brenda Navarro - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Se não vem do próprio ventre, que o filho venha de algum outro lugar. É o que parece pensar a personagem que, num impulso, ao encontrar a criança mais bonita que viu na vida brincando num parque, resolve aproveitar a distração das pessoas ao redor para levar o garoto consigo. No novo lar, por assim dizer, o menino passará a ser chamado de Leonel.

A repentina ausência de Daniel provocará grande abalo numa das casas. Em outra, a presença de Leonel também motivará turbulências severas. Maternidades arruinadas estarão no centro de um romance no qual as relações familiares são sempre fraturadas, com mulheres marcadas por formas de machismo que vão do assédio e da brutalidade ao feminicídio.

Brenda manda bem ao arquitetar crescentes dramáticas a partir de vozes narrativas bem trabalhadas, singulares. A elaboração da linguagem junto com a forma como burocracia e descaso parecem caminhar juntos no país de Frida Kahlo aproximam "Casas Vazias" de um dos grandes romances mexicanos dos últimos anos. Falo de "O Invencível Verão de Liliana", de Cristina Rivera Garza (Autêntica Contemporânea).

Em certa altura de seu livro, Cristina observa como, numa época em que o termo feminicídio ainda não estava estabelecido, havia dificuldade para denominar o que fizeram com sua irmã. Em "Casas Vazias" a reflexão é sobre outro vazio no dicionário: "Não existe palavra que defina uma mãe sem um filho que ela já pariu, porque não sou amátrida, já que Daniel continua vivo e eu sou a mãe, sou algo pior, algo inominável, algo que não foi conceitualizado, algo que só o silêncio torna suportável", reflete a mãe destroçada.

Os problemas sociais que rondam a mulher que pegou Leonel para si, por sua vez, nos levam a outro bom romance mexicano recente. Em "Páradais", de Fernanda Melchor (Mundaréu), encontramos elementos que ajudam a compreender como o racismo funciona no país norte-americano. Também há um aceno para a questão em "Casas Vazias":

"De um lado te dizem para se esforçar, pra melhorar a raça, não permanecer pobre, mas se você faz tudo isso, te chamam de arrogante, arrogante desgraçada, você tem é vergonha dos seus, mas se você fica onde te disseram que é o seu lugar, então logo, logo fica na cara o sangue de índia, de totonaca, de vendedora de quesadillas, de verduras. E se você tiver mesmo a pele escura, pronto, já se fodeu, fica por baixo pra te pisarem, essa é a lei da vida".

Por fim, numa América Latina onde sumiços de pessoas por diferentes motivos pintam como traço em comum entre diversos países, difícil não pensar numa tradição literária construída nas últimas décadas que olha para esse assunto. Sim, Bolaño e companhia escreveram muito sobre desaparecidos por conta dos horrores das ditaduras, mas os paralelos são inevitáveis mesmo diante de uma história que tem a maternidade em seu plano principal.

"A gente imagina tudo, menos que um dia vai acordar com o martírio de um desaparecido. O que é um desaparecido? É um fantasma que te assombra como se fosse parte de uma esquizofrenia", lemos num momento de "Casas Vazias". "Não importa o que se diga a respeito: morto é melhor que desaparecido", temos em outro. E seguimos nossa própria história entre buscas constantes e dores intermináveis.

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