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Todo bom leitor merece ler Cormac McCarthy

Cormac McCarthy, autor de Meridiano de Sangue - Beowulf Sheehan
Cormac McCarthy, autor de Meridiano de Sangue Imagem: Beowulf Sheehan

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

21/06/2023 04h00

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Tivesse que fazer uma lista de autores que todo bom leitor merece ler, certamente Cormac McCarthy estaria nela. O estadunidense morreu na semana passada, aos 89 anos, mas deixou romances repletos de momentos que assombram, maravilham, impressionam, comovem. Ao me lembrar do primeiro contato com essa obra, não é só a cabeça que reaviva passagens de "Meridiano de Sangue", o corpo também responde, emite sensações, certo calafrio diante de cenas protagonizadas pelo juiz Holden, dos maiores personagens da literatura.

Ao lermos sobre a prosa de McCarthy é comum encontrarmos destaque para alguns elementos. As descrições minuciosas e a composição de cenários deslumbrantes, por exemplo. Ou a forma como espalhava a letra "e" por seus parágrafos, garantindo uma fluência rara com um recurso de domínio improvável. Há ainda a tensão que oscila entre cooperação e violência extrema no embate entre homens e natureza.

Sujeitos com características arquetípicas em histórias que dialogam com passagens míticas (especialmente bíblicas) e certa aura misteriosa a envolver toda a trama também são marcas caras a McCarthy. A sensação é que em seus romances sempre há algo a nos escapar, uma força oculta, extraterrena, a reger as ações dos personagens. É frequente sentirmos que há uma camada inefável nas narrativas do autor. Poucas semanas atrás conversei com Daniel Galera a respeito disso, o papo está no podcast da Página Cinco.

"Meridiano de Sangue" traz duas outras marca que me chamam a atenção e se repetem em alguns livros de McCarthy: a presença do espanhol em sua prosa e o choque de diferentes culturas. História de um grupo de mercenários que trota em direção ao rio Bravo para dar cabo de indígenas, nesse romance estadunidenses, mexicanos e povos originários se engalfinham numa área que só passou a fazer parte do território dos Estados Unidos após a guerra travada contra o México na década de 1840.

O tal Destino Manifesto, a crença dos próprios estadunidenses de que seriam abençoados por sabe-se lá qual deus e por isso poderiam massacrar quem encontrassem pela frente para expandir seus domínios, servia de base moral para as atrocidades cometidas. Num território em disputa onde o embate entre diferentes grupos acaba sempre em muito sangue, as diferenças culturais também são latentes.

Levando em conta esse contexto, chama atenção - e merece elogio - o modo como o autor incorpora em seu texto traços dessas distintas formas de encarar a vida e da língua espanhola, inclusive com toques regionais do idioma de Cervantes. A América Latina integra a literatura de McCarthy.

São aspectos presentes também em "A Travessia", um dos livros da chamada "Trilogia da Fronteira". Aliás, talvez a porta de entrada mais sucinta para a obra de McCarthy seja a primeira parte desse romance. O modo como o autor arquiteta a história de um garoto que cruza vilarejos, cidades e o deserto para levar uma loba até o seu canto no mundo é memorável. A relação que se estabelece entre o jovem e o animal indócil e tudo o que a dupla vivencia ao longo da jornada, com encontros que nos fazem lembrar de Juan Rulfo, já é o suficiente para que o livro conquiste um espaço privilegiado na memória.

Não que seja uma caminhada tranquila. Como Saramago, Cormac McCarthy é daqueles autores que exigem alguma dedicação do leitor. Paciência para pegar as manhas de suas construções, para encarar longas cenas e descrições, lidar com certa morosidade típica do tempo retratado em parte de seus principais livros, ambientados numa época em que longas viagens eram feitas sobre cavalos, não com a pressa dos nossos dias.

Pegada diferente tem um outro livro apontado por bons colegas como o favorito da obra de McCarthy. Falo do "A Estrada", no qual pai e filho buscam por formas de permanecer de pé num mundo distópico, pós-apocalíptico. É outro romance com cenas que ficam encravadas em nossas mentes e, de tão terríveis, vez ou outra voltam a nos assombrar. Por outro lado, se o juiz Holden, de "Meridiano de Sangue", é uma espécie de incorporação do mal, gosto de pensar no garotinho que está no centro da narrativa de "A Estrada" como o seu oposto.

Sem entender muito bem o universo hostil e depauperado ao seu redor, é essa criança que fará com que o leitor seja conduzido a uma jornada em busca da humanidade, de algum resquício de bondade, de condutas morais que resistam até mesmo ao pior dos cenários. É também um livro carregado de outra marca de McCarthy, esta menos edificante: o flerte com o cafona, a dança com construções quase piegas, frases quase melosas demais, que, por outro lado, geram um contraste esperançoso em meio aos muitos momentos dantescos que se espalham pela obra desse escritor incontornável.

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