Conheça o estranho e misterioso universo de Yoko Ogawa

Uma rua deserta, ladeada por árvores. Ela não é escura, mas a forte neblina, junto com a luz amarelada das lâmpadas, deixa o caminho soturno. Não há perigo iminente. O lugar é seguro, os dias por ali são tranquilos. Ainda assim, sons estranhos deixariam qualquer um ressabiado.

Nesse cenário lúgubre, vez ou outra alguma imagem parece surgir em meio à névoa. São lampejos que quase escapam do campo de visão. Não dá para saber ao certo o que aconteceu. Se é que algo realmente aconteceu.

Relacionadas

Por que vale a pena ter uma biblioteca em casa

Ensaio e HQ ajudam a desvendar as misteriosas pinturas de Goya

Pagu será a homenageada da Flip; hora de refletirmos sobre arte engajada

Ler Yoko Ogawa é permanentemente se sentir caminhando por um cenário assim. Autora que já faturou os principais prêmios literários de seu país, o Japão, Yoko entrega aos leitores narrativas misteriosas. Nelas, algo parece nos escapar, a realidade parece estar enevoada, imprecisa, distorcida.

Mesmo com histórias que aparentemente nada têm de amedrontadoras, a sensação de desconforto aumenta conforme avançamos em suas páginas. Sem monstros nem sustos, Yoko maneja como poucos a ambientação do suspense.

O insólito, tão presente na literatura latino-americana contemporânea, caracteriza a obra da japonesa, mas numa chave bem diferente do que vemos na produção deste nosso canto do mundo. Esse traço da autora é evidente em "O Museu do Silêncio", publicado por aqui em 2016 pela Estação Liberdade, casa de Yoko no Brasil.

Nele, um museólogo chega a uma cidadezinha perdida no interior do Japão para ajudar a montar uma coleção que reúne os pertences mais simbólicos de pessoas que morreram, projeto de uma senhora hostil, de idade bastante avançada.

No afetivo "A Fórmula Preferida do Professor", estranhamentos se dão por meio de um matemático cuja memória imediata não dura mais que 60 minutos. Bilhetes guardados nos bolsos do terno surrado não evitam as confusões mentais do professor que desenvolve um inesperado vínculo com o filho de sua empregada.

O livro de Yoko que fez mais barulho por aqui foi "A Polícia da Memória", publicado originalmente em 1994 e lançado no Brasil em 2021, após a tradução para o inglês ser finalista do International Booker Prize.

De pegada distópica, com evidentes ecos de Orwell e Bradbury, nele o leitor é levado a uma sociedade onde apagamentos são feitos pelo Estado. A manipulação chega ao ponto de se deletar o que há de mais íntimo em cada pessoa.

A Estação Liberdade acaba de publicar mais um livro de Yoko. Traduzido por Eunice Suenaga, "A Piscina; Diário de Gravidez; Dormitório: Três Novelas" reúne, como o título evidencia, um trio de narrativas sucintas, com cerca de 50 páginas cada.

Se nos romances uma das virtudes é a calma com a qual a autora desenvolve personagens, cenários e situações para criar a sensações de incômodo e desnorteio no leitor, nas novelas a brevidade acaba por fazer com que essa imersão fique prejudicada. Perde-se algo quando Yoko se propõe a ser mais ligeira.

Ambientada numa espécie de orfanato, "A Piscina" é uma história sobre amadurecimento, relações fraturadas e paixonite juvenil com erotismo comedido e doses de crueldade. "Diário da Gravidez" tem um foco inusitado: é a irmã da grávida, moça que ocasionalmente trabalha como promotora em supermercados, apesar das claras dificuldades no trato pessoal, quem constrói esse diário pouco confiável.

É em "Dormitório", finalmente, que encontramos as melhores marcas de Yoko. Nele, uma mulher volta ao lugar onde viveu enquanto era universitária e reencontra o professor que aluga cômodos da casa para estudantes.

É um homem que caiu em desgraça após ser envolvido no que chama de boatos; o corpo incompleto e cada vez mais debilitado parece acompanhar a ruína que extrapola o próprio ser e se espalha pelo seu entorno. Entre sumiços inexplicáveis que a ex-residente procura se entender com suas memórias e achar respostas para certas incógnitas.

São histórias pontuadas por alguns elementos em comum. Diferentes formas de se olhar para corpos em transformação, por exemplo. Ou a comida, especialmente os doces, como detalhes importantes em cada uma das narrativas. Ou os personagens singulares, cheios de peculiaridades, outra marca da autora.

Sim, a matemática, os professores, as imagens que se dissipam, bem como as confusões sentimentais, a memória fugidia e certa camada de melancolia também estão por lá. Esses são aspectos que parecem indissociáveis do admirável universo que Yoko Ogawa cria em sua literatura.

Assine a newsletter da Página Cinco no Substack.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Instagram, YouTube e Spotify.