Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Laura Alcoba: a conturbada vida de uma filha de guerrilheiros
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Laura Alcoba nasceu em La Plata, cidade a pouco mais de 50 quilômetros de Buenos Aires. Filha de guerrilheiros, já na infância soube o que é levar uma vida à sombra. Ainda criança, após o pai ser preso, foi morar com a mãe na França, onde vive até hoje. Trago aspectos biográficos de Laura porque essas pinceladas podem ser essenciais para compreendermos a sua literatura.
Laura escreve em francês, mas, pelo menos em parte de sua obra, apresenta um olhar profundamente voltado para seu país de origem e para a vida como exilada. É difícil marcá-la com apenas uma etiqueta, deixá-la em apenas uma caixinha. A arte da escritora não se limita a uma bandeira. As histórias contadas por Laura oscilam entre a América Latina esmagada pelo coturno de militares e a Europa que serviu de refúgio para tanta gente desta parte do mundo.
Sua forma está mesmo mais próxima da autoficção que voltou a ganhar vigor por aqui graças a franceses como Édouard Louis e, sobretudo, Annie Ernaux. Não espere encontrar em Laura o insólito de matizes inventivas carregadas, marca de autoras argentinas contemporâneas como Samanta Schweblin e Mariana Enríquez.
No entanto, na epígrafe de "O Azul das Abelhas", livro que acaba de sair no Brasil pela Paris de Histórias, tradução de Natália Bravo, um traço recorrente na atual literatura latino-americana: a reverência a Clarice Lispector. Numa das crônicas de "A Descoberta do Mundo" que Laura pescou: "Para Vermos o azul, olhamos para o céu. A terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de nostalgia?".
"O Azul das Abelhas" é o segundo livro da trilogia "A Casa dos Coelhos", iniciada com o romance que dá nome à série. Nesse título inicial, mais impressionante, publicado por aqui também pela Paris de Histórias, acompanhamos pelo olhar ingênuo de uma criança a aterradora clandestinidade junto a integrantes dos Montoneros, grupo armado de resistência à ditadura argentina.
Nessa sequência encontramos a garota que a cada quinze dias visita o pai numa prisão em La Plata enquanto aguarda o momento de se mudar para a França, onde a mãe se abriga desde agosto de 1976. É no começo de 1979 que a filha de guerrilheiros deixa, enfim, a Argentina para começar uma nova vida nos arredores de Paris. Por ali, precisará reinventar o seu lugar no mundo enquanto a juventude chega.
É um livro marcado pela proximidade com outros refugiados, solidários no perrengue que vivem, bem como por preconceitos e visões toscas dos franceses. "Ela não mentiu sobre a Argentina. É um país que existe de verdade. Jogam até mesmo futebol por lá", ouve a garota de uma colega incrédula com o seu passado, descrente de que a amiga de sotaque estranho havia chegado de avião na Europa.
Procurar em outro país uma condição mais favorável para tocar a própria existência implica rupturas. Em outros casos, certa dedicação é necessária para que elos importantes se mantenham. Na literatura, a garota e seu pai encontram uma forma de prosseguirem com alguma conexão.
Impressões sobre leituras em comum compartilhadas via cartas aproximam a dupla separada não só pelo oceano, mas também pela perspectiva de futuro. É um contato que esfria um pouco com o tempo, com certa paralisia que acomete a garota após determinado pedido do homem trancafiado numa cela em La Plata. Enquanto isso, a vida à francesa passa a moldar a protagonista.
"O Azul das Abelhas" é um livro sobre o exílio, sobre como horrores políticos impactam diferentes gerações. Mas é sobretudo uma obra que reflete o processo de aprendizado e assimilação de outra cultura. De uma criança argentina que vive seus dias tentando domar o francês, essa "língua engraçada" que "solta e retêm os sons ao mesmo tempo, como se, no fundo, ele não estivesse certo de querer deixá-los partir"
É uma língua cheia de "letras mudas, que não se deixam capturar pela voz", o que carrega um simbolismo especial para aqueles que vivem entre codinomes, fugas e esconderijos. Aqueles que podem desaparecer a qualquer momento, após arbitrariedades de algum Estado tomado por carniceiros.
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