A organização impossível e as boas surpresas de uma biblioteca
"A organização de uma biblioteca nunca encontrará — aliás nunca deveria encontrar — uma solução. Simplesmente porque uma biblioteca é um organismo em perene movimento. É um terreno vulcânico onde sempre está acontecendo algo, mesmo que não seja perceptível de fora."
Irá se estrepar quem for atrás de "Como Organizar Uma Biblioteca", de Roberto Calasso (Companhia das Letras, tradução de Patricia Peterle), pensando que terá, enfim, um guia confiável com orientações para dar um jeito na própria coleção de livros. A obra se afasta de qualquer tom de manual e contraria seu título para enxergar a beleza do inevitável caos que costuma reger acervos particulares.
O pequeno volume é uma daquelas edições simpáticas que vão agradar principalmente os bibliófilos apaixonados, aqueles que não conseguem imaginar a vida longe dos livros. São quatro ensaios escritos por Calasso, um dos principais editores da Itália nas últimas décadas. O texto maior, que abre o volume, também dá nome à obra. É, de longe, o mais interessante.
Calasso tem consciência: cada biblioteca particular deve ter a sua própria lógica. Sabendo que qualquer idealização tende a fracassar, são os donos daquele espaço que precisam encontrar o melhor arranjo possível para o acervo que está sempre em movimento. São entidades vivas que acompanham as transformações dos leitores que fazem da biblioteca um dos sentidos para a sua vida.
Gosto da ideia sugerida por Calasso: saber mais ou menos onde os livros devem estar pode ser o suficiente. Outro dia mesmo bateu a vontade de reler "O Cavaleiro Inexistente", de Italo Calvino. Não sabia exatamente onde hibernava a novela, mas, pela sua categoria (literatura italiana) e pelo formato (de bolso), foi fácil imaginar onde encontrá-lo. A busca não me tomou mais que alguns minutos, parte deles dedicada a namorar outros livros pelo caminho.
Admito que tento adotar certa ortodoxia, mas o intenso ir e vir de novidades faz com que a biblioteca esteja sempre num movimento perceptível até para quem não está familiarizado com ela. As seções de literatura brasileira e de literatura estrangeira têm brigado por mais espaço. E dentre os livros de outras paragens se desdobra um conflito interno: a literatura latino-americana, com certo apoio da francesa e da japonesa, parece trabalhar dia a dia para dominar o maior número possível de prateleiras. Os ingleses, coitados, andam cada vez mais acuados.
Do historiador alemão Aby Warburg que Calasso pesca: "Na biblioteca perfeita, quando se vai em busca de um livro, acaba-se pegando um que está ao seu lado e que se revela ainda mais útil do que aquele que procurávamos". Pois cruzando a citação com a minha busca pelo livro de Calvino, tomei para mim o elogio da perfeição. Encontrei "O Cavaleiro Inexistente", mas peguei mesmo para reler "O Visconde Partido ao Meio", então esmaecido em minha memória.
Ainda integram o volume "Os Anos das Revistas", sobre periódicos literários da primeira metade do século 20, e "Nascimento da Resenha", a respeito da origem de tal gênero, desde sempre problemático pela camaradagem ou desavenças existentes por trás de muitos elogios ou pedradas. Fecha o volume "Como Organizar uma Livraria", irmão daquele primeiro, outro bom momento da obra.
"Os livros são seres autossuficientes, não requerem nada por perto — ou no máximo uma xícara de chá ou de café", escreve Calasso, que continua: "O verdadeiro leitor não tem necessidade de muito: um pouco de gosto na decoração e na iluminação já são o suficiente. E também a possibilidade de passar um tempo confortável, dedicando-se àquela deliciosa atividade que os ingleses chamam de browsing. O importante é que ele possa encontrar os livros que procurava e descobrir os que não sabia estar procurando".
É uma lógica que convida à exploração serena, a desbravar com calma as prateleiras, foge ao que nos é bombardeado por algoritmos. Calasso sabe que o livro desempenha um papel e ocupa um espaço no imaginário que extrapola em muito o mero objeto. Tanto que arremata: "Se o não livro é mais suficiente, quer dizer que o mundo está virando mais uma feia página de sua história".
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