Shakespeare banido: perseguição à arte seguirá enquanto render votos
Agora foi Shakespeare quem rodou. Escolas de Hillsborough censuraram trechos e baniram livros do bardo por conta de passagens com certo teor sexual. Caíram obras como "Romeu e Julieta" e "Hamlet". Querem preservar os jovens que vivem bombardeados por erotismo por todos os lados. Que vejam apelos sexuais pela internet, não uma representação simbólica numa obra de arte.
Hillsborough é um condado da Florida, para surpresa de ninguém que acompanha o tsunami de censuras que avança pelos Estados Unidos. Governando por Ron DeSantis, que busca ocupar o lugar de Donald Trump, o estado é exemplo de como a perseguição a obras de arte serve para arregimentar o eleitorado brucutu.
Outro dia, uma professora foi mandada embora porque mostrou aos alunos uma foto de "David", escultura monumental de Michelangelo. Pelo que parece, há quem tenha performado horror ao notar que, ó meu deus, o homem de mármore tem um pingolim.
Anos atrás, uma escola no Tennessee decidiu eliminar qualquer vestígio de Harry Potter de suas dependências. Exorcistas aconselharam os assustados profissionais: aquelas magias fantasiadas em Hogwarts poderiam invocar espíritos indesejados. Talvez temessem a loira do banheiro.
Sim, é patético. E recorrente. Segundo a American Library Association, em 2022 foram censurados 2571 títulos nos Estados Unidos. A entidade fundada há 140 anos nunca tinha registrado tamanha sanha para o silenciamento. Não surpreende que a maior parte dos livros perseguidos seja sobre comunidades que lutam para ter diretos plenos, como os LGBTQIA+.
Esse momento tosco de inquisição à arte vem de alguns anos, se intensifica quando certos grupos almejam o poder e será difícil de freá-lo enquanto for bom instrumento para fins políticos. É isso, potencializado pelo pavor de milhões a tudo o que difere do espelho, que está por trás dessas caçadas. Não se enganem com discursos cheios de moralismo de fachada e bom-mocismo fajuto.
A estupidez também dá as caras por aqui há algum tempo. Num dos casos mais emblemáticos, pais compraram uma ideia tresloucada de que Ana Maria Machado faria apologia ao suicídio em "O Menino que Espiava pra Dentro". Na história, o protagonista pensa em se engasgar com um pedaço de maçã para acessar o mundo da imaginação.
Na época, em 2018, conversei com Ana Maria, uma de nossas maiores escritoras vivas e referência mundial na literatura infantojuvenil. Generosa, ela ainda tentou enxergar um aspecto razoável na fogueira em que foi metida:
"Os pais fazem bem em se preocupar com o que os filhos leem e devem mesmo ler junto com eles. E também ler sozinhos, ler mais, se acostumar muito com a leitura de literatura - para perder o medo da linguagem simbólica e entender como funciona a linguagem nessa função de contar histórias e fazer ficção (ou seja, inventar enredos e personagens que não são reais)", disse. Depois, estabeleceu bons paralelos:
"Se uma criança gosta de livros de sereias, não quer dizer que deseje se afogar para viver no fundo do mar. Se outra ama histórias de anjinhos, não significa que quer se jogar de uma montanha sobre uma nuvem para viver com eles. Mas, por outro lado, qualquer pessoa de bem deve saber do que fala antes de espalhar acusações graves e levianas desse tipo".
É um chamado à razão, escanteada de muitas conversas. Vira e mexe chegam histórias de escolas tirando um Edgar Allan Poe das aulas para que alunos não leiam sobre gatos emparedados ou educadores gastando horas e horas para selecionar livros insossos o bastante para não melindrar ninguém.
Perde a literatura. Perdem os novos leitores, privados de personagens memoráveis e histórias grandiosas que lhes chegariam por meio da mediação de profissionais preparados para esse papel. Perde a sociedade, cada vez menos disposta a lidar com nossas sombras, virtudes, desejos e contradições. Ganham os obtusos.
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