Escritores estão perdendo a confiança nos leitores?
Em "Quando Deixamos de Entender o Mundo" (Todavia, tradução de Paloma Vidal), o chileno Benjamín Labatut conta turbulentas histórias de pesquisadores que mudaram o rumo da ciência, da humanidade e do planeta num passado recente. No último conto do bom livro, um traço que atazana a literatura contemporânea: o autor desvela o que havia deixado subentendido em outros momentos.
Muitos escritores e editores parecem preocupados em ter certeza de que leitores entenderão exatamente o que desejam que entendam com a literatura. Cercam o espaço para interpretações, justificam escolhas do autor, apostam num didatismo sonolento para que livros passem uma mensagem clara, sem brecha para as dubiedades, contradições, diferentes visões possíveis.
No excelente "O Invencível Verão de Liliana", de Cristina Rivera Garza (Autêntica Contemporânea, tradução de Silvia Massimini Felix), por exemplo, uma nota de rodapé corre para explicar uma decisão da autora que caberia aos leitores compreender (ou não compreender, o que deveria fazer parte do jogo).
Para ficarmos em mais uma amostra, na resenha de "Salvar o Fogo", de Itamar Vieira Junior (Todavia), manifestei o incômodo com uma narrativa preocupada em garantir com que estejamos de certo lado da história. Muitas vezes o que convém à vida não é o ideal para a arte.
Por razões profissionais, venho lendo um grande volume de romances escritos em língua portuguesa nos últimos anos. São trabalhos publicados por uma gama imensa de editoras e por escritores em momentos bem díspares da carreira.
Tenho percebido que essa vontade de garantir o pleno entendimento da história vem ganhando uma nova vertente. Deslocam-se as chaves interpretativas do texto literário em si para já escancará-las em notas introdutórias ou apresentações escritas pelo próprio autor. A incidência parece ser maior em títulos autopublicados ou que não passam por um trabalho atento de edição.
Veja bem, não me refiro a contextualizações sobre um grande clássico ou a explicações a respeito de certas escolhas de um tradutor. O problema também não está em aparatos críticos ou em prefácios que pincelam a trajetória e certas marcas do autor (tipo de material que, diga-se, fica melhor no final do livro; sou do time dos posfácios).
Aponto uma outra questão. São esforços do autor para argumentar sobre decisões tomadas em pontos delicados do enredo, explicar escolhas estilísticas, proteger-se de quem eventualmente pode não entender ou não gostar do que irá ler. Já trombei até com esboços de pedidos de desculpas por personagens que não soam como cristais perfeitos para quem busca na arte a idealização que não encontra no mundo.
É uma evidente busca por apresentar a criatura já domada, fazendo com que o leitor adentre à narrativa com o olhar bem direcionado, domesticado. Numa mistura de insegurança e condescendência com a própria escrita, diversos autores pesam a mão para limitar o universo interpretativo e tentar controlar os passos de quem está prestes a mergulhar no texto.
Não fulanizo a questão porque os casos são diversos e foram notados - e se avolumaram - ao longo de meses, mais de ano. Fico com uma impressão: a confiança nos bons leitores anda cada vez mais baixa.
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