Cinco livros assombrados pelo 11 de setembro chileno
Hoje o 11 de setembro chileno completa 50 anos. Nesse dia, em 1973, as forças armadas do Chile bombardearam o Palácio de la Moneda, sede do governo, para depor o socialista Salvador Allende da presidência conquistada nas urnas três anos antes. O golpe militar se concretizou com o suicídio de Allende.
Começava ali uma ditadura que perdurou até 1990 e teve Augusto Pinochet como principal carniceiro. Foram anos de perseguições a grupos políticos, desaparecimentos e milhares de assassinatos promovidos pelo Estado tomado pelos milicos. Sadismo fazia parte do pacote. O músico Victor Jara, por exemplo, tornou-se símbolo da barbaridade dos fardados após ter as mãos trucidadas antes de ser assassinado. Era popular pelo talento com o violão, que embalava canções de protesto.
Como em outras ditaduras do continente, nem bebês, meninas ou garotos foram poupados pelos militares. Em "Crianças", livro que me emociona a cada revisita, María José Ferrada e María Elena Valdez criam poemas ilustrados para 34 pequenos desaparecidos ou executados pelos oficiais chilenos. Eternizam gente como Luz Marina Paineman Puel, morta com 1 mês de vida, e Lorena del Pilar Escobar Lagos, assassinada aos 3 anos. Saiu pela Pallas Mini com tradução de Carla Branco.
Por conta da data, deixo aqui a indicação de outros livros de alguma forma assombrados pela ditadura de Pinochet e de seus comparsas - incluindo aí muita gente da sociedade civil.
Sim, vou pregar a palavra de "Kramp". Sempre que tenho uma brecha, falo o quanto essa ótima novela merece ser conhecida. Até hoje ninguém veio resmungar que leu e não gostou. É outro trabalho da María José Ferrada, desta vez publicado pela Moinhos em tradução de Silvia Massimini Felix.
Em "Kramp", uma garota acompanha seu pai, um vendedor, pelo interior do país, em viagens por regiões onde pessoas acreditam que é melhor mesmo nem falar de política. Enquanto a protagonista saca o "teatro ridículo" que é o mundo, encontra com certo fotógrafo que viaja para capturar imagens de fantasmas, referência aos desaparecidos ou assassinados pelos militares.
Sigo com uma quase novidade. Digo assim porque a Companhia das Letras finalmente decidiu reimprimir "Noturno do Chile", uma das melhores portas de entrada para a obra de Roberto Bolaño. Num monólogo construído por um parágrafo que ocupa praticamente todo o livro, um padre reaviva suas memórias intelectuais e literárias.
Destaco a cena em que o sujeito é convocado pelos capangas de Pinochet para ministrar aulas sobre marxismo (o que seria isso que tanto temiam e combatiam, afinal?) à alta cúpula do governo golpista. A versão brasileira foi traduzida por Eduardo Brandão.
Enfim Pedro Lemebel começou a receber a atenção que merece aqui no Brasil. Há pouco a Zahar publicou "Poco Hombre - Escritos de Uma Bicha Terceiro-Mundista" (tradução de Mariana Sanchez). Pela ótica da sexualidade, da repressão à diversidade sexual, vislumbramos ou topamos de frente com marcas do horror da ditadura chilena em muitos dos textos de Lemebel.
Vale prestar atenção em como Lemebel trata também do período de redemocratização cheia de passadas de pano do Chile. É um país que "saltou ao futuro com uma mochila lotada de cadáveres gotejando sangue pelas sendas do seu reconciliado desenvolvimento".
Se muitos dos algozes chilenos morreram (e ainda morrem, às vezes até se matam, como rolou outro dia com um milico enfim condenado) sem pagar pelos crimes cometidos, pela arte é possível construir uma reparação simbólica, ao menos. É o que Félix Vega e Francisco Ortega fazem em "Os Fantasmas de Pinochet" (Conrad, tradução de Delfin).
Num quadrinho que resgata descalabros como uma uruguaia encontrada após ter sido enterrada viva e decapitada pelos militares, a imaginação vai até o inferno para fazer com que Pinochet pague de verdade pelos crimes cometidos. É bom ver o ditador em seu Juízo Final, de frente com o horror que ele mesmo arquitetou.
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