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Opinião

Uma trans entre mitos gregos, a Cuba revolucionária e a guerra em Angola

O garoto sente que não é Raul, mas Cassandra. Mora em Cienfugos, cidade a 230km de Havana. Aos dez anos, ainda viverá um tanto antes de ir para Angola ser um guerreiro de mentirinha, como diz. A diferença entre o que é e o que esperam que seja acompanhará a trajetória do protagonista de "Me Chama de Cassandra", livro do cubano Marcial Gala publicado por aqui pela Biblioteca Azul, em tradução de Pacelli Dias Alves de Sousa.

Raul é um garoto reflexivo, sensível, que troca a rigidez da escola pela contemplação do mar. Gosta de perambular entre livros proibidos, roubados ou comprados com muito esforço pela família. Em casa, quando estão sós, às vezes sua mãe lhe veste de garota para que possa projetar no rebento a imagem da irmã morta, trauma jamais superado.

Cassandra é mais do que o nome de quando a personagem se reconhece como mulher. Ao longo de toda a narrativa, Gala constrói pontes entre a Cuba revolucionária e a mitologia grega. Vez ou outra, num exercício de sincretismo tão caro a este nosso canto do mundo, também resvala em mitos de origem africana.

Sobrepõe guerras do século passado com as batalhas da "Ilíada". Introjeta um panteão de deuses num cotidiano de repulsa ao mundo imaterial, no qual impera a patrulha para que todos tenham um pensamento único, uma só ideologia.

Entre os mitos gregos, Cassandra é aquela que enxerga o que acontecerá no futuro, mas, maldita, é sempre desacreditada. Raul é a própria reencarnação de Cassandra. "Eu vejo pessoas mortas. É errado ver pessoas mortas, isso é loucura, somos todos marxistas-leninistas agora, ateus, e se alguém está vendo pessoas mortas é porque ficou louco", reflete em um de seus momentos de angústia.

Sabe que cairá aos 19 anos, após ser enviado para a guerra em Angola, então parceira de Cuba. O algoz será o seu capitão, preocupado com o que outros machões do exército pensariam caso descobrissem que tinha uma relação nem tão secreta assim com Raul - ou Cassandra, chamada de Marilyn Monroe pelos companheiros de armas.

O assédio e a violência sexual fazem parte da rotina à qual a personagem é submetida após ser enviada para a guerra. É um desvelar da demagogia de homens de farda e metralhadoras em mãos, preocupados em não permitir que a vida entre quatro paredes abale posições — homofóbicas, transfóbicas — que assumem diante de seus pares.

No pano de fundo de "Me Chama de Cassandra" está a construção do socialismo em Cuba ao longo da segunda metade do século 20. Numa metáfora do auxílio soviético à ilha então comandada por Fidel, o pai de Raul se apaixona por uma russa que, aos poucos, passa a fazer parte da família, provocando choques de diferentes escalas. É uma estranha que tumultua o lar ao mesmo tempo em que apresenta o jovem a grandes nomes da literatura.

O romance também carrega marcas da cultura brasileira, especialmente da música, em Cuba. É uma narrativa na qual questões como o racismo e a homofobia ("é proibido ter um filho veado") aparecem bem integradas a passagens de diferentes momentos da vida da protagonista — a criança sensível, as descobertas literárias, os abusos e os horrores na guerra...

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Daí que causa estranhamento uma dispensável carta do irmão de Raul que trata de explicitar o que já estava muito bem construído nas entrelinhas de "Me Chama de Cassandra".

Delicado e incisivo, "Me Chama de Cassandra" nos ganha pelos contrastes que cria. A mescla entre a cultura grega e as convicções de um processo revolucionário. As truculências e as fraquezas, as fragilidades, em meio a uma guerra. A reencarnação de um mito que se choca contra o que há de pior no ser humano. E uma personagem que é um achado, cujo complexo processo de compreensão da identidade trans e seu atrito com o mundo ao redor é construído de forma bastante satisfatória.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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