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A solidão e os mistérios de Jon Fosse, vencedor do Nobel de Literatura

"As paredes estão lá, e é como se vozes silenciosas falassem a partir delas, existe um grande silêncio nas paredes e esse silêncio diz coisas que jamais podem ser ditas em palavras".

Eis um trecho que simboliza bem o que encontramos na literatura do norueguês Jon Fosse a partir da leitura de "É a Ales", de onde vem a citação, e de "Brancura". São os livros mais acessíveis do autor no Brasil neste momento.

Na última quinta-feira a Academia Sueca anunciou Fosse como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Nesse primeiro contato com sua obra, deparei-me com textos marcados por silêncios, mistérios e solidões. Por personagens em conflitos existenciais, que parecem buscar o isolamento ao mesmo tempo em que procuram não só pelo outro, mas também por si mesmos, por alguma fagulha que possa iluminar suas próprias trevas.

São narrativas com deslocamentos temporais, toques fantásticos e certa pegada mística, marcadas pela fantasmagoria de antepassados que surgem como possíveis guias. "É a Ales" e "Brancura" são textos cheios de camadas subterrâneas, que exigem empenho para a interpretação da história e a elaboração de seus significados. É um bem-vindo contraste com o que apontei outro dia, sobre uma vertente da literatura que parece ter perdido a confiança em seus leitores.

Paisagens ao mesmo tempo belas e soturnas também aproximam as duas obras. Numa é a floresta fechada e escura que traga o protagonista. Na outra, é no mar, entre fiordes, que um sujeito se perde para sempre de sua esposa. Mais do que cenários, a natureza e suas variações (a neve intimidadora, o céu límpido, o calor reconfortante) ecoam o estado emocional dos personagens de Fosse. É um recurso que passa longe da originalidade, convenhamos.

Como não poderia deixar de ser, cada livro tem as suas singularidades. Em "Brancura", publicado no original neste ano e já em pré-venda pela Fósforo (tradução de Leonardo Pinto Silva), um homem consumido pelo tédio apenas dirige. Segue até o carro empacar diante da floresta que o amedronta. "Do que eu sentia medo. Por que estava com medo. O medo era tamanho que não consegui nem sair do carro. Não me atrevi", reflete entre uma tentativa e outra de domar as "baboseiras" do pensamento.

Sem poder ir para frente ou para trás (lemos sobre o carro, mas podemos estender a definição à vida do sujeito) nem recordar os lugares por onde passou, supera a paralisia e faz o que lhe resta: se embrenhar na floresta. Mais do que encontrar alguma ajuda, a busca do personagem será por alguém que rompa a sua solidão, que represente algum acolhimento, que ofereça um caminho que o livre do desastre que parece iminente.

"Quem sabe tenha sido exatamente por isso que vim para a floresta, porque queria morrer congelado. Mas não quero. Eu não quero morrer. Ou será que é exatamente isso que eu quero", debate consigo. É literalmente uma luz que trará esperanças para aquela desorientação física e emocional. Uma silhueta branca, de uma alvura inviolável, que se destaca no meio da escuridão. Pode ser um anjo bom, um anjo mau ou ambos ao mesmo tempo, cogita.

O surgimento dessa e de outras entidades enigmáticas trarão ainda mais incógnitas para a narrativa, que então transita entre o delírio e o sobrenatural, com possíveis ecos religiosos. Como a própria Academia Sueca sublinhou, Fosse é um autor que se destaca pela forma que dá àquilo que não pode ser dito. Sabe manejar o que há nas entrelinhas, o material em suspensão, a densidade do silêncio, o que dá corpo aos grandes mistérios da nossa presença (e eventual ausência) no mundo.

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Em dado momento, o homem aponta sobre o que ouve: "Era quase como se essa voz carregasse em si algo que se pudesse chamar de amor". Sem complacência, o autor trata de destruir ali mesmo o flerte com o piegas. "Amor, o que quero dizer com essa palavra, pois se há uma palavra que não significa nada é essa", prossegue. Fosse tem consciência de que melosidades são capazes de arruinar um grande texto.

Presenças difusas, a diluição do próprio ser no mundo ao redor e um caminho que talvez se faça em contato com algo de fora do plano físico (uma entidade de luz, alguma ligação transcendental com nossos antepassados...) também integram "É a Ales". Publicado originalmente em 2003, o romance saiu por aqui há algumas semanas pela Companhia das Letras, com tradução de Guilherme da Silva Braga.

Nele, uma mulher deitada em sua casa tem uma visão de si mesma no passado. Ela se vê no dia em que, há mais de 20 anos, o marido saiu para dar uma volta de barco pelos fiordes e nunca mais voltou. Profundamente melancólica, a narrativa se faz com diferentes gerações da família do personagem cruzando a história da moça que buscava sim se distanciar do mundo, mas não almejava aquela solitude completa.

Com frases muito mais longas, utilização de parágrafos e diálogos que remetem ao teatro, o estilo de Fosse em "É a Ales" é bem diferente do que apresenta em "Brancura". O clima e boa parte das questões abordadas, como dito, são semelhantes. Agora, no entanto, os enigmas, os silêncios e crises pessoais são pontuados por vultos, fogueiras e cabeças de ovelhas.

O modo como o autor sobrepõe gerações de antepassados do homem desaparecido resulta numa história cíclica que espelha certa circularidade do próprio estilo de Fosse. Numa outra camada da narrativa, a paralisia diante daqueles que simplesmente somem tem muito mais a ver com a América Latina do que podemos supor enquanto desbravamos páginas cheias de nevascas e fiordes.

Muita gente virou a cara quando a Academia Sueca anunciou a medalha para mais um europeu. Eu mesmo não levantaria bandeira para torcer para outro Nobel norueguês. Seria bobagem, no entanto, menosprezar o trabalho do laureado. Algo que nem sempre acontece: é ótimo quando o Prêmio nos leva a ler livros com a qualidade da literatura feita por Jon Fosse.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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