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Opinião

Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo te convidaram para almoçar? Fuja!

Da leitura de "A Irmã Menor", perfil de Silvina Ocampo escrito por Mariana Enriquez (Relicário, tradução de Mariana Sanchez), ficaram na memória detalhes de onde a autora de livros como "A Fúria" e "As Convidadas" vivia.

Herdeira de uma família riquíssima, Silvina morava num dos bairros mais caros de Buenos Aires. Só que a condição do seu imenso apartamento lembrava o horror de alguns dos seus melhores contos.

Mariana, jornalista e uma das grandes autoras contemporâneas da Argentina, conta: baratas pululavam no lugar e a escritora não só aprendeu a conviver com esses insetos, mas às vezes se aproveitava deles para ter uma desculpa para não ser importunada.

Outro detalhe caseiro de "A Irmã Menor" também me marcou. Pelo que Mariana apura, as comidas servidas por Silvina no apartamento decadente eram pavorosas, deprimentes. Um pedaço de carne poderia ser assado a ponto de se parecer com um teco de carvão. Uma bandeja cheia de cinzas fazia as vezes do que restou da tentativa de um arroz à cubana.

Essas intimidades me vieram à cabeça enquanto me metia com a vida pessoal de outro grande escritor argentino: Jorge Luis Borges (com quem, aliás, Silvina carregou tensões ao longo dos tempos). Eu me intrometi na casa da irmã menor da família Ocampo graças ao trabalho de uma grande escritora contemporânea. Agora, um bibliófilo dos mais respeitados do mundo que me leva até os aposentos do autor de "O Aleph". Falo de Alberto Manguel.

Manguel trabalhou e conviveu com Borges. Durante um bom tempo ia à casa do escritor para ser seu leitor, colocar o homem já cego em contato com as palavras dos livros que tanto admirava. Essas visitas pautadas pela literatura que serviram de base para que Manguel escrevesse "Com Borges", publicado por aqui pela Âyiné, tradução de Priscila Catão.

"Borges construiu para Buenos Aires uma cadência e uma mitologia que ainda hoje identificam essa cidade. Quando Borges começou a escrever, Buenos Aires (tão distante da Europa, considerada o centro cultural) era vaga e indistinta, e parecia requerer uma imaginação literária para impô-la à realidade."

No volume ligeiro e prazeroso de se ler, Manguel escreve sobre como Borges ajudou a forjar a cidade, recorda leituras que fizeram juntos e pincela traços da personalidade do autor de "O Livro de Areia". Lembra que para Borges o que interessava era a voz literária, que precisava "ser individual, nunca nacional, nunca de um grupo ou de uma escola de pensamento".

Manguel não deixa para lá o lado mais amargo do grande autor argentino. Aponta que seria possível construir uma história da literatura apenas com grandes escritores rejeitados pelo colega. Gente como Goethe, Flaubert, Tolstói, Thomas Mann e Gabriel García Márquez. Também registra como o racismo estúpido, "absurdo", de Borges revelava seu lado mais desprezível.

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E há também um bom tanto de paixão pelos livros e pela literatura, como não poderia deixar de ser. Destaco um trecho especialmente bonito, que carrega toques do que escrevi a partir da leitura de "O Vício dos Livros", de Afonso Cruz:

"Ele acreditava, contra todas as probabilidades, que nosso dever moral era ser feliz, e que a felicidade podia ser encontrada nos livros, apesar de não conseguir explicar a razão disso. 'Não sei exatamente por que acredito que um livro nos traz a possibilidade de sermos felizes', disse ele. 'Mas me sinto verdadeiramente agradecido por esse simples milagre'."

Quem visitava Borges costumava se surpreender com o lugar onde vivia. Seu apartamento era singelo, pouco mobiliado. Mesmo a biblioteca era modesta, bem distante das imensidões que imaginou em parte de sua obra. Não custa lembrar: ali vivia um senhor que ficou cego aos 50 e tantos anos. Havia, acima de tudo, uma escolha funcional para a organização dos seus aposentos.

Mas lembrei de Silvina durante a leitura de "Com Borges" por outra questão. Em certo momento do livro, lemos que Borges sequer notava quão terrível era a comida da casa de Silvina quando visitava a escritora.

Mais do que isso, Manguel conta que o próprio Borges "adorava conversar, e para as suas refeições sempre escolhia o que chamava de 'alimento discreto', arroz branco ou macarrão, para que a refeição em si não o distraísse da conversa".

Alimento discreto, carne transformada em carvão, cinzas de arroz à cubana. Às vezes vejo aquela brincadeira: com quem, vivo ou morto, você gostaria de sentar à mesa, tomar um café?. Com certeza não escolheria Borges nem Silvina. Não se fossem os responsáveis pelo cardápio e execução dos pratos, pelo menos.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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