É lamentável ver a maior feira de livros do mundo silenciar a literatura
Após os ataques do Hamas contra Israel, que ainda revida com mais uma série de massacres na Faixa de Gaza, a Feira do Livro de Frankfurt, a mais importante do mundo para o setor editorial, cancelou a homenagem que faria a Adania Shibli, palestina autora de "Detalhe Menor".
Por conta da obra, Adania receberia um prêmio oferecido pela Litprom, agência alemã dedicada à promoção da literatura. Alegaram que Adania estava de acordo com o cancelamento, mas representantes da autora negaram a informação.
Publicado originalmente há seis anos, "Detalhe Menor" é uma ficção baseada num ataque do exército israelense que matou um grupo de beduínos em 1949. Apenas uma jovem sobreviveu. Ela foi capturada e barbarizada pelos militares. A tradução da obra para o inglês chegou à final de premiações importantes, como o National Book Award e o Booker International Prize. O livro saiu aqui no Brasil em 2021 pela Todavia, com tradução de Safa Jubran. Escreverei sobre ela na próxima coluna, na quarta.
Logo vieram respostas ao que a Feira de Frankfurt fez com a escritora palestina. Editoras e instituições cancelaram a participação no evento. Autores de diversos cantos do mundo se manifestaram em defesa de Adania, da pluralidade de ideias e da diversidade literária. Uma carta aberta crítica à decisão e solidária à autora foi assinada por nomes como a francesa Annie Ernaux, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah e a polonesa Olga Tokarczuk, recentes vencedores do Nobel.
Acompanho a cobertura da Feira de Frankfurt feita pelo Publishnews. Vejo que durante o lançamento de um manifesto pela leitura em alto nível, assunto dos mais espinhos e importantes, Bruhan Sönmez, escritor turco à frente da associação de escritores PEN International, disse:
"É preciso coragem. A extrema direita não gosta de escritores, no mundo todo. Membros do PEN em Myanmar e no Afeganistão foram mortos ano passado, outros estão presos na Bielorússia. Essas pessoas representam a alta literatura, a leitura em alto nível". Pois é. Olhando para a decisão da organização da Feira de Frankfurt, parece que não é apenas a extrema direita que se acovarda diante da literatura.
Durante seu discurso na abertura da feira, pelo que também leio no portal que cobre o mercado editorial, o filósofo esloveno Slavoj Zizek falou sobre o cancelamento da homenagem a Adania. Chamou de escandalosa a decisão e disse que se sentia um pouco envergonhado de estar naquele palco. Defendeu a leitura como meio de tomada de consciência, de contato com ambiguidades, com o que é complexo.
Zizek foi aplaudido e vaiado. Parte do público deixou o auditório no meio do seu discurso. Uma ministra alemã comentou que é importante ouvirmos uns aos outros. O presidente da Feira reconheceu não ter gostado do que ouviu, ressaltou a importância da escuta, defendeu a liberdade da palavra. Nem parece que Zizek reclamava justamente de terem optado por não dar palco a uma escritora palestina, por silenciarem a literatura nesse momento tão dramático.
Se quisessem dialogar com o que acontece no Oriente Médio, os organizadores da Feira de Frankfurt tinham é que ter corrido para encher a programação de escritores palestinos e israelenses, colocá-los para conversar, apresentar suas visões de mundo, contar suas histórias e falar sobre as histórias que levam para seus livros. Haveria momentos de tensão em meio a inevitáveis discordâncias? Certamente. E isso não deveria ser um problema.
Empatia. Alteridade. Diálogo. Compreensão. Multiculturalismo. Escuta. Lidar com o divergente. Conviver com a contradição. Saber que o mundo não é feito de espelhos nem gira no entorno do próprio umbigo. São palavras e expressões que comumente pintam quando falamos a respeito do poder e da importância da literatura, de como a arte pode contribuir para tentarmos construir uma sociedade mais justa, respeitosa, tolerante, plural.
Num momento dos mais dramáticos, é lamentável ver o evento mais importante do setor editorial em todo o mundo optar pelo desprezo à literatura e escolher silenciar a voz de uma autora que até dias atrás era digna de homenagem. No entanto, serve para separarmos quem se importa e acredita mesmo na arte de quem só usa esse papo de forma cínica para ficar bem em certas rodinhas e enganar os desavisados.
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