O que esperar do novo livro de Gabriel García Márquez?
Sei não, sei não. Fico reticente quando vejo a notícia de que alguma obra póstuma chegará ao mercado. Nem falo só de literatura. Poxa, se o artista considerou que o livro, a música, a peça ou seja lá o que for não estava suficientemente bom para levá-lo ao público, por que comercializá-lo depois que o sujeito se foi deste mundo? Sim, eu sei que a resposta normalmente passa pela grana que esses trabalhos podem render.
Aguardo com boa dose de desconfiança o romance inédito de Gabriel García Márquez. Chegará aos leitores em 2024, duas décadas após a última ficção do colombiano, "Memórias de Minhas Putas Tristes", e dez anos após a sua morte, aos 87 anos. A novidade irá se chamar "Em Agosto Nos Vemos" e sairá no Brasil pela Record, com tradução de Eric Nepomuceno (tem papo com ele no podcast).
Em nota, Rodrigo e Gonzalo, filhos de Gabo, apontaram o livro como último esforço criativo do pai. Disseram ainda que o texto tem muitos méritos e é mais uma amostra da capacidade inventiva do escritor, de sua linguagem poética, da narrativa cativante, do entendimento do ser humano e do carinho pelas suas vivências e desventuras, principalmente amorosas. Estranho seria se dissessem algo diferente disso. Já pensou se a dupla me bem com um "é bem fraquinho, mas publicaremos mesmo assim"?
Veículos como EFE e El País lembram que "Em Agosto Nos Vemos" é um livro sobre o qual Gabo já havia comentado algumas vezes e até lido publicamente certos trechos. O plano do autor era construir uma história dividida em cinco partes autônomas, que poderiam ser lidas como contos independentes, mas também comporiam um possível romance. A obra integraria uma espécie de tetralogia involuntária ao lado de "O Amor nos Tempos do Cólera", "Do Amor e Outros Demônios" e "Memórias de Minhas Putas Tristes".
No centro das narrativas de "Em Agosto Nos Vemos", uma senhora com seus cinquenta e tantos anos que em meados de agosto viaja em busca de experiências sexuais numa pequena cidade da costa colombiana onde sua mãe está enterrada. Em 2003, o El País publicou um trecho de uma dessas histórias na qual Gabo trabalhava. Num texto com certo tom piegas, Ana Magdalena Bach chega a um hotel, apanha um pouco das tecnologias do quarto e, depois, sai para comer algo e dançar. Na pista que conhece o homem que será seu companheiro durante aquela noite.
O que de fato nos espera? Aguardemos. Se olho com reticência para essas obras póstumas, também lembro da ponderação mais óbvia: Franz Kafka. "O Castelo", livro do tcheco que mais me marcou, só chegou aos leitores (e de forma inacabada) após a morte do autor. Isso graças à infidelidade de Max Brod, amigo que decidiu publicar aquilo que Kafka escolhera deixar engavetado. "O Processo" e "Carta ao Pai", sobre o qual escrevi semana passada, são outros livraços que jamais conheceríamos se não fosse a traição de Brod.
É torcer para que o romance póstumo de Gabo, vencedor do Nobel de 1982 e autor de "Cem Anos de Solidão", um dos maiores livros da história, pelo menos honre o nome do escritor.
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Atualização às 10h38: a ordem das informações do último parágrafo foi alterada para evitar qualquer ambiguidade.
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