A Flip de Conceição Evaristo e Luiza Romão, e do apagão com sinal de Baco
O que a edição deste ano da Flip deixará mesmo para a mesa de bar dos próximos encontros será o que rolou entre a tarde e a noite da quinta-feira. Uma chuva que nunca chegou a ser muito forte fez com que o calor da cidade ficasse ainda mais insuportável. Depois, uma fase da energia caiu. Ventiladores e microfones até que funcionavam, a luz às vezes acendia, mas sem chances para ar-condicionado e geladeira. Corpos e cervejas em perigo.
A coisa piorou: apagão total. Ou perto disso. No breu quase absoluto, uma loja de vinhos bem no centro do centro seguia iluminada. Preferi ignorar o gerador e entender aquilo como um chamado de Baco. Na mesma rua, alguns quarteirões adiante, um restaurante também seguia firme: música ao vivo, mesas cheias, aparente calmaria. A impressão é que não havia sido notificado sobre o fim do mundo.
Pelas ruas pedregosas e escuras de Paraty o que se encontrava era muita gente indo de um lado para o outro procurando pelo que fazer. Os que rumavam para um canto ouviam de quem estava voltando: nem vai, é cilada. Seguiam mesmo assim. O caminho alimentava a ilusão de encontrar um bom rolê. Naquela altura, trocar mensagens pelo celular também estava difícil.
A internet entrou no pacote de apagões. Disseram que um raio causou tudo isso. O céu estava nublado e chuvoso, mas bem pouco hostil. Talvez tenham se referido a raios solares de outrora, vai saber. O cenário insólito deixou muita gente confusa: o que era realidade e o que era delírio na noite anterior? Também foi decisivo para que uma pergunta se repetisse ao longo dos dias: quando a Flip voltará para julho? Sei não. Mas a ideia é que em 2024 ela aconteça em setembro.
Todos viram ou ouviram falar: Flip cresceu bastante, virou algo muito além da programação da tenda dos autores. Só consegue acompanhar bem o que se passa em Paraty quem mente. Ou quem tenta fingir que apenas meia dúzia de espaços são relevantes. Cada pessoa volta da cidade com o seu próprio recorte da festa junto com a certeza de ter perdido um monte de papos legais.
Da minha parte, achei um pecado não ter chegado a tempo de ver a primeira metade da ótima conversa sobre sexo na literatura (e, mais importante, sobre o choque entre moralismo e literatura) na Casa da Música. Schneider Carpeggiani fazia o meio de campo entre Amara Moira e Eliane Robert Moraes, que sempre merecem ser ouvidas (tem papo com a Eliane no podcast).
Sorte ter conseguido ajeitar a agenda para uma das mesas que mais aguardava: o encontro entre Luiza Romão, autora dos poemas de "Também Guardamos Pedras Aqui" (Nós; tem papo com ela aqui), e o cubano Marcial Gala, do romance "Me Chama de Cassandra" (Biblioteca Azul; aqui a resenha). São obras que dialogam, atritam e dão camadas contemporâneas a mitos da tradição grega.
A força de Luiza no palco, especialmente quando se levantou para interpretar e amalgamar as literaturas ali discutidas, foi outro grande momento desta edição. E contrastou com o tom solene demais, cerimonioso demais, que muitas vezes aparece como soporífero em conversas literárias. É um mal que na Flip acomete principalmente quem senta nas cadeiras da tenda principal.
Das mesas que participei, compreendi finalmente o quanto estou distante de um universo fantástico de jogos de videogame ao dedicar tempo demais a "God of War" e Fifas da vida. Foi no papo com Tainá Félix e Flávia Gasi, no Sesc, uma boa amostra de como a literatura é generosa para abraçar outras linguagens.
Na Casa Pagã, uma troca de ideias durante o apagão de quinta. No Publishnews, a alegria de entrevistar e ser entrevistado por Xico Sá para uma plateia lotada. E só não alardeio a derradeira mesa do Sesc como outro momento inesquecível da Flip deste ano porque pega mal ficar incensando o próprio trabalho — ainda que eu fosse o coadjuvante quase silencioso. Estava lá para mediar Roberta Estrela D'Alva, Sergio Vaz e Conceição Evaristo, uma rara conjunção de forças.
Não só nesse momento, mas ao longo de todo o seu périplo por Paraty, foi bonito de ver e de ouvir relatos sobre a multidão que acompanhava Conceição pelos lugares por onde passava e tentava escutar o que ela dizia nas casas em que empunhava o microfone. Conceição é uma figura pop da nossa literatura, não há dúvidas. Espero que esteja sendo tão lida quanto festejada, preocupação que ela compartilhou comigo num papo que batemos recentemente — está aqui.
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