Livros para enxergar o que nem sempre notamos numa viagem
Lembro Alberto Mussa comentar que confia mais na literatura do que nas viagens para conhecer a fundo um país. Já Kalaf Epalanga, numa das crônicas de seu recente "Minha Pátria é a Língua Pretuguesa" (Todavia), escreve que escritores foram alguns de seus melhores guias turísticos. No papo no podcast, ele cita como Jorge Amado lhe apresentou Salvador.
Confio na literatura para outra função. Prestes a viajar, mergulho em livros do país de destino para ter acesso àquilo que dificilmente conhecerei como turista. São os escritores que me mostram a intimidade de habitantes do lugar, as intrigas das pequenas cidades, as relações entre vizinhos, as estruturas de poder e os problemas sociais que ficam muitas vezes distantes de quem viaja a passeio.
Como tantos outros, comecei a conhecer a Espanha com as andanças de "Dom Quixote". Os romances de Henrique Vila-Matas, o cemitério dos livros esquecidos de Carlos Ruiz Zafón e os quadrinhos de Carlos Giménez e Antonio Altarriba já ocupam espaço no meu imaginário há algum tempo. Esses últimos dois, com George Orwell e o seu "Homenagem à Catalunha", contribuíram para formar uma ideia sobre a Guerra Civil Espanhola.
Encontrei vestígios do conflito pelas páginas do belo "Canto Eu e a Montanha Dança", da catalã Irene Solà (Mundareú, tradução de Luis Reyes), livro que conquistou diversos bons leitores aqui no Brasil. Importante notar como a Espanha é um país cuja literatura se divide em pelo menos três línguas relevantes: o euskera, do território basco, o catalão e, claro, o espanhol.
A leitura do badalado "Boulder", romance que passeia pelo mundo e no qual a maternidade arruína um casal de mulheres, aconteceu em espanhol mesmo, traduzido do catalão por Nicole d'Amonville Alegría. Esse livro de Eva Baltasar sairá no Brasil pela Dublinense, está previsto para abril de 2024 e merece a atenção dos leitores.
Também bisbilhotei o que há de indizível e as relações truncadas de pequenos vilarejos meio que isolados nas montanhas graças à literatura de Sara Mesa. "Um Amor" (Autêntica Contemporânea, tradução de Silvia Massimini Felix) me despertou a memória da passagem por uma cidadezinha de Portugal ao pé da Serra da Estrela, onde os habitantes pareciam sempre dividir um grande segredo.
Entre Madri e algumas cidades menores no seu entorno estive pelas páginas memorialísticas e cheias de melancolia de Manuel Vilas. Confesso, entretanto, que deixei "Em Tudo Havia Beleza" (Tusquets, tradução de Sandra Martha Dolinsky) pela metade.
Gostei bem mais de conhecer certa versão dessa Espanha central pelo olhar curioso e simpático de Rosa Montero em "O Perigo de Estar Lúcida" (Todavia, tradução de Mariana Sanchez). E a mexicana Brenda Navarro com o seu "Cinzas na Boca" (Dublinense, tradução de Julia Dantas) que mostrou a hostilidades a imigrantes latinos.
Não, não confunda esses livros com aqueles guias de viagem. Não tem nada a ver com isso. Estamos falando de literatura, então esse acréscimo para um périplo por um país desconhecido acontecerá de forma indireta, surgirá das entrelinhas. É assim que a boa arte costuma nos impactar. São pequenas contribuições quase imperceptíveis que, quando vemos, mudaram a nossa forma de enxergar o mundo.
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