Calma, não deixaremos de ler Machado só por causa da lista da Fuvest
Estive de férias durante as últimas semanas. Acompanhei por cima certas discussões que rolaram nos meios literário e editorial durante esses dias. Uma delas foi a da decisão da Fuvest de colocar apenas mulheres entre as leituras indicadas para as provas dos anos de 2026, 2027 e 2028.
A escolha se tornou pública no início de dezembro. A discussão engrenou na segunda quinzena do mês. Entre cartas abertas, um punhado de argumentos razoáveis e a habitual gritaria, uma choradeira me deixou encucado: a de que pessoas não leriam mais um Machado de Assis ou um Lima Barreto simplesmente porque esses autores ficaram de fora da lista do vestibular.
Se alguém só lê um Graciliano Ramos, para pegar outro nomão, a fim de sacar qual é a resposta certa numa determinada questão de alguma prova, estamos muito mal. E estamos mesmo muito mal. Muita gente encara a leitura dessa forma: uma obrigação enfadonha para, quem sabe, tirar uma nota legal.
Essa leitura dirigida para uma finalidade específica, acertar um teste que averiguaria o que alguém entendeu de um livro, me parece o oposto da leitura aberta e repleta de possibilidades que a literatura proporciona. A interpretação da arte não deve ser encarada assim, como algo bem fechadinho. Lê Machado — ou Lima, ou Graciliano — buscando por meras respostas para gabaritar uma prova? Tenho pena de você.
Quem, no entanto, se desesperou pensando que ninguém mais lerá alguns de nossos clássicos porque eles deixarão de ser cobrados num vestibular durante alguns anos, pode ficar tranquilo. A formação de leitores e o possível interesse pela obra de grandes escritores vai muito além da preparação para se fazer uma prova ou outra.
Podem apostar: há milhares brasileiros que amam Machado independentemente da relação — talvez de ódio — que nutriram com o Bruxo durante os anos escolares.
A decisão da Fuvest automaticamente jogou alguma luz em nomes como o de Nísia Floresta, que assina "Opúsculo Humanitário", de 1853. Também intensificou os holofotes que já iluminavam autoras como Conceição Evaristo e, com uma força menor, gente importante que segue na ativa. Falo da moçambicana Paulina Chiziane, recém-premiada com o Camões, e da angolana Djaimilia Pereira de Almeida, vencedora do Oceanos de 2019. Clarice e Lygia, incontornáveis, seguem em cima do palco do vestibular.
A tendência é, sim, que leitores, pesquisadores e editores deem mais atenção à obra dessas artistas. Com o tempo, talvez tenhamos a oportunidade de mergulhar nesses nomes e discutir o espaço que ocuparam ou ocupam na literatura brasileira e a pertinência de seus trabalhos para nossos dias. É sempre mais produtivo quando o debate acontece olhando a fundo o que há nos textos de cada autor ou autora.
E não se enganem. Também virão as leituras pouco entusiasmadas, que mais afastam do que aproximam os estudantes de ótimos livros. Enquanto isso, os homens que fazem parte do nosso cânone literário seguirão reverenciados entre aqueles que apreciam a literatura, não há razões para se preocupar.
Deveríamos mesmo é pensar em como fazer com que mais leitores mergulhem em livros pelo simples prazer da leitura, do exercício intelectual, não pela obrigação de acertar um teste numa prova qualquer.
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