Perguntas para uma literatura feita com ChatGPT
A notícia: a japonesa Rie Kudan venceu um prêmio literário em seu país com o romance "Tokyo-to Dojo-to". Quando foi receber o Akutagawa, a tal distinção, contou que uma parte de seu romance foi escrito com a ajuda do ChatGPT . Coisa pouca, por volta de 5% do livro, argumentou.
Desconfio que, diferente de Kudan, diversos outros escritores que utilizam da artimanha não seriam sinceros assim sobre os bastidores do trabalho. Estou certo de que, neste momento, punhados de autores usam algum tipo de inteligência artificial para tentar pegar um atalho na escrita de seus livros. No começo do ano passado, notícias circulavam apontando que o próprio ChatGPT seria "coautor" de centenas de livros digitais vendidos pela Amazon.
O surgimento de novas ferramentas segue um enredo semelhante. De cara há a empolgação com a novidade. Junto disso vem a preocupação: e agora, o que será das nossas vidas? E os empregos? Quais os limites éticos? É válido utilizar a coisa para fazer algo que fazíamos de outras formas? A necessária discussão se instala enquanto a realidade se desloca. Certos padrões são estabelecidos até que o novo fique incorporado e normalizado.
Gostemos ou não, com a inteligência artificial a coisa não será diferente. Só que agora não estamos diante de uma ferramenta ordinária, de uma chave de fenda qualquer, mas de uma tentativa de emular nossa inteligência por meio de uma incontável série de cálculos probabilísticos.
Freio o impulso de me levantar em berros condenatórios contra a perigosa geringonça para tentar observar nuances em sua utilização. Kudan, pelo visto, é solitária. Compartilhava com o robô alguns de seus pensamentos mais sinceros. Foi o ChatGPT, diz, que fez com que superasse entraves da escrita e inspirou conversas dos personagens de seu romance.
Não fica claro o limite entre inspiração e simples cópia no trabalho de Kudan. Ainda assim, algumas questões vem à mente. Uma obra com trechos escritos pelo ChatGPT é a mesma coisa que uma obra com trechos inicialmente escritos pela ferramenta, mas depois editados pelo autor? Nesse caso, estamos falando de uma coautoria? Ou o autor é mesmo quem gerou o parágrafo inicial e o humano mexendo nele passa a ocupar o posto de editor?
Outro ponto. O livro de Kudan é, pelo que leio, ambientado numa Tóquio do futuro e a forma como os humanos lidam com a inteligência artificial é um dos assuntos explorados pela autora. Num romance dessa natureza, a utilização de uma ferramenta de última geração na concepção ou até mesmo na redação da obra não pode ser vista como uma ousadia artística da escritora? Reforço: é uma pergunta em busca de respostas possíveis, não mera retórica para defender a japonesa.
A forma como muitos leitores lidam ou podem vir a lidar com livros escritos junto com a ferramenta traz mais complexidade para o debate. Segundo o júri que premiou Kudan, seria difícil encontrar algum defeito em seu livro. Exageros assim são mais comuns do que deveriam em comissões do tipo, relevemos.
Se um livro beira a perfeição, o uso do ChatGPT é mesmo um problema? Por outro lado, o que é a perfeição num romance, ainda mais num romance contemporâneo recém-publicado? Com base no quê esperamos e avaliamos a suposta perfeição de uma obra de arte? E os ruídos que deslocam o eixo da compreensão artística, onde ficam?
Vendo a repercussão entre leitores, muita gente considera que um livro parcialmente escrito por inteligência artificial não chega a ser um problema, desde que isso fique claro para todos. Contudo, quem garantirá essa clareza?
São muitas as questões. E não serão os programas de inteligência artificial que nos darão as respostas.
Assine a Newsletter da Página Cinco no Substack.
Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Instagram, YouTube e Spotify.
Deixe seu comentário