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Quando Liliana Colanzi despertou, o dinossauro ainda estava lá

"Quando despertou, o dinossauro ainda estava lá".

Busco "O Dinossauro", do guatemalteco Augusto Monterroso. Está em "Obras Completas (E Outros Contos)", publicado pela Mundareú com tradução de Lucas Lazzaretti. O conto brevíssimo perambulou pelo imaginário enquanto li "Vocês Brilham no Escuro", da boliviana Liliana Colanzi, lançado no ano passado pela mesma editora. A tradução é de Bruno Cobalchini Mattos.

Passado, presente e, em alguns casos, futuro dividem o mesmo espaço em muitos dos contos de Liliana. É como se o dinossauro ainda estivesse lá porque, antes de dormir, jogávamos videogame ou comíamos um jantar afanado da Frangos Bin Laden, lanchonete de uma das histórias, com o bichano de outras eras aos nossos pés.

Em Liliana, Tupac Amaru, uma "Percéfone" que aprendeu karatê, otakus e manifestantes tratados como terroristas podem habitar a mesma narrativa. A huaca sagrada, a Pachamama escondida por indígenas em algum ícone cristão e a violência policial dividem as mesmas páginas. A tormenta de pixels surpreende tanto quanto as asas do pterodátilo. A intensa mistura de referências é uma de suas marcas mais evidentes.

As argentinas Samanta Schweblin e Mariana Enriquez, as equatorianas Maria Fernanda Ampuero e Mónica Ojeda, a também boliviana Gioavana Rivero. São diversas as autoras latino-americanas que merecem atenção pelo que vêm fazendo nas narrativas breves. Liliana é mais um nome para colocarmos nessa lista.

Numa entrevista para o El Pais, a escritora comentou que a passagem do tempo lhe seduz. Que gosta de imaginá-lo numa escala superior à da vida humana, sempre uma fagulha se comparada à história geológica. "O planeta estava aqui antes da gente e seguirá depois. Esse é o fascinante da literatura: imaginar aquilo que nos supera".

Em seus contos, enrascadas contemporâneas, como dilemas da globalização e a uberização do trabalho, contrastam com um mundo que se faz e se transforma lentamente, ao longo de milênios. Traços que acompanham a espécie humana - a capacidade de se revoltar, os atos de vingança, a luta por uma vida mais digna - aparecem em meio a manifestações artísticas seminais, aspectos culturais e pitadas de diferentes mitologias que integram nosso continente.

A caverna

Conto de abertura e um dos mais intrigantes do livro, em "A Caverna" o leitor acompanha a vida que se desenrola em diferentes níveis e durante um longuíssimo período de tempo numa montanha. Tudo está conectado pela natureza que observa as transformações naquele espaço onde o homem desponta como o ser capaz de abalar qualquer tipo de ordem.

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Prestando atenção àquilo que nos escapa (ou que simplesmente desprezamos), a autora olha para a vida microscópica, um tipo de existência "cujo eixo é a merda, o guano, o excremento generoso. O presente que um ser vivo dá ao outro, sem saber, e por meio do qual a existência continua". Nesse momento, sua literatura se aproxima de uma corrente que se apoia na ciência para buscar em pormenores da natureza elementos para a criação.

Nos seis contos de "Vocês Brilham no Escuro", Liliana usa ilustrações em meio ao texto e mostra que sabe que a língua é viva, está em constante mudança. Trabalha com elementos fantásticos e oníricos. Dialoga com os games e com a cultura pop (ainda quem sem incorporá-la com a mesma intensidade de uma Mariana Enriquez). Leva os leitores à região central da Bolívia, a Oaxaca, no México, a um vilarejo na Amazônia. Constrói narrativas ambientadas em povoados onde motos dão voltas ao redor da praça e insetos gigantes tostam nos postes de luz.

Vocês brilham no escuro

Cenários afastados dos grandes centros, nos quais épocas díspares parecem se mesclar numa mesma realidade, faz lembrar de outra boa contista latino-americana: a brasileira Paulliny Tort. Em "Erva Brava" (Fósforo), Paulliny cria uma série de histórias que se passam em Buriti Pequeno, cidade fictícia no interior de Goiás. Nessa região central do Brasil que Liliana foi buscar a tragédia inspiradora do conto que dá nome e encerra "Vocês Brilham no Escuro".

"Meu pobre pai, tão burro, foi beber no bar onde estavam os catadores de sucata, escondido de minha mãe e de todos nós, com a desculpa de que ia jogar no bicho", lemos no começo da narrativa que dará forma ficcional às consequências do acidente com césio-137. Aconteceu em Goiânia, no final dos anos 1980.

Estão ali personagens que se encantam com a beleza do material radioativo e, ignorantes, passeiam e fazem planos com a substância algo mágica. A evacuação do lugar onde a calamidade ocorreu, a demolição de casas, as vidas destroçadas e os sobreviventes vistos como amaldiçoados marcam o conto de Liliana habitado por brasileiros "treinados para esquecer" após a longa ditadura.

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Num salto temporal, indo para Brasil de 2021, a autora mostra que os temores por esses lados do mundo costumam ser muito mais iminentes do que problemas a eclodir no futuro. Diz o integrante de uma banda que toca em zonas contaminadas: "Se temos medo do câncer? Amigo, antes do câncer seremos trucidados pela polícia".

Por outro lado, o cemitério nuclear seguirá radioativo pelos próximos séculos. É uma marca da nossa geração que permanecerá presente em diversas outras gerações. É um dos nossos dinossauros que ainda estará lá.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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