Livros na folia: blocos, avenidas e o carnaval de Clarice Lispector
A Grande Rio levará para a Sapucaí um enredo inspirado em "Meu Destino é Ser Onça", de Alberto Mussa. Além de estar entre o que há de mais fino em nossa literatura, Mussa também entende pra caramba de carnaval. Já a Portela desfilará a saga de Kehinde, protagonista de "Um Defeito de Cor", romanção de Ana Maria Gonçalves, um dos livros mais importantes da literatura brasileira neste século.
A Porto da Pedra também foi buscar num livro, um espanhol do século 16 ("Lunário Perpétuo", de Jerónimo Cortés), a inspiração para o desfile deste ano. Em São Paulo, viagens de Mário de Andrade e passagens de seu "Pauliceia Desvairada" serão carnavalizadas pela Mocidade Alegre. Certamente há mais escolas por aí que buscaram nos livros a inspiração para os seus desfiles, mas a ideia não é criar uma lista exaustiva.
É furado o papo de que carnaval e literatura não combinam. Há muito de escritores na avenida e há muitos escritores na folia. Uma olhada rápida no Instagram nesta época do ano indica que parte importante da literatura brasileira contemporânea passa esses dias metida entre baterias e purpurinas, não enfurnada em meio aos livros.
Acompanho de longe. Teve uma época em que eu era mais presente nos festejos. Empurrei carro alegórico, vi blocos nascerem, fingi que achava boa a mistura de punk com samba, perdi o rumo na hora de voltar pra casa. A disposição para enfrentar o calor, paciência para o furdunço e tolerância com bebidas ruins e caras, contudo, minguaram. Mesmo o interesse pelos desfiles arrefece a cada ano.
Aos poucos me aproximo da surrada imagem do leitor sossegado em seu canto com seus livros. É uma época em que lembro principalmente de Clarice Lispector. Segundo Clóvis Bornay, a escritora ficaria belíssima de Anunciação. Uma fantasia feita de "túnica de renda negra cravejada de estrelas e de brilhantes. Na cabeça a meia-lua e numa das mãos uma taça de prata derramando estrelas". É o que a própria Clarice conta numa crônica na qual recorda um encontro com o carnavalesco.
E não escapo de um clichê: "Restos do Carnaval". Difícil pensar na relação entre a folia e a literatura e não mencionar esse conto de "Felicidade Clandestina". "Quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas", escreve Clarice na história de pegada memorialística.
É uma volta à infância da mulher a resgatar o tempo de lança-perfume e saco de confete economizados com avareza, do medo das máscaras e dos dias de cabelos frisados (ela odiava seus cabelos lisos), batom bem forte e ruge na face para escapar da "meninice". Um conto que remete ao dia em que enfim teria a chance de "ser outra que não eu mesma", mostrando para o leitor o encanto da fantasia, essa espécie de brecha na vida real que tanto buscamos e o carnaval proporciona.
Só que é um conto de Clarice. Vem a má notícia, vem a desilusão, vem até o espanto com a alegria alheia. "O jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso". Na folia, na brincadeira entre desconhecidos na rua, que também vem a salvação para aquela mulherzinha de 8 anos. Ela era, sim, uma rosa.
Carnavalizar com Clarice também é ótimo.
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