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Opinião

Dois livros fantásticos para ler com o fim do Carnaval

Rolou um dia desses: queriam cancelar Franz Kafka. Repito: cancelar Franz Kafka. Não era delírio de Carnaval. Alguém lançou a estupidez, outro alguém comprou a ideia e, como de hábito nas redes, muita gente correu para amplificar a besteira enquanto a imprensa ajudava a armar o circo. Fiz o que me parecia razoável, zombei e dei risada daquela sandice.

Imagina só, cancelar Kafka! Imagina não só os monumentos que o tcheco deixou sendo apagados, mas boa parte da melhor literatura dos séculos 20 e 21 sumindo também. Cancelou Kafka? Tchau, Gabo. Cancelou Kafka? Tchau, Saramago. Se me preocupo? Nada, nem o próprio Kafka conseguiu se cancelar, por mais que tenha tentado. Me divirto imaginando o apagão em nome de sei lá qual boa intenção. Fogo em "O Processo" e sopa na "Monalisa" por um mundo melhor!

Aproveito para dar uma sugestão bem óbvia aos leitores. Ainda não leu Kafka? Pois leia. É fantástico em mais de um aspecto da palavra. Podem começar por "A Metamorfose" mesmo, seu trabalho mais lembrado. É um texto breve, acessível, que carrega algumas das marcas mais importantes do autor.

Ao acordar transformado num inseto gigante, Gregor Samsa vira uma aberração. A necessidade de ter alguma utilidade em casa e a forma como o trabalho esmaga o homem são aspectos dos que mais me chamam a atenção nesse trabalho de Kafka. Traço recorrente na obra do autor, a tensão entre um filho acossado por um pai intimidador está ali. É uma boa pedida para quem quer se manter num estado de suspensão do real ao ler algo após o Carnaval.

Outro que cumpre bem essa proposta é "A Corneta", de Leonora Carrington, uma das leituras mais surpreendentes que fiz no ano passado (Alfaguara, tradução de Fabiane Secches). Leonora nasceu na Inglaterra e viveu boa parte da vida no México. Seu surrealismo mistura mitologia celta, tarô e cultura pré-hispânica, isso num texto divertido, engraçado em diversos momentos.

Quem protagoniza a história é uma senhora que, aos 92 anos, ganha de sua melhor amiga uma corneta auditiva. O aparelho não só contorna o problema de audição da mulher, mas faz com que ela passe a ouvir de forma sobre-humana. Após ser tocada de casa pela família, num asilo que a nonagenária agora boa de ouvido viverá uma jornada cheia de mistérios, simbolismos, personagens marcantes e um crime a ser resolvido. Pesco aqui um trecho da obra:

"Se me lembro bem, os escritores geralmente encontram alguma desculpa para seus livros, embora eu não entenda por que alguém deva se desculpar por ter uma ocupação tão tranquila e pacífica. Militares nunca parecem pedir desculpas por matarem uns aos outros, mas romancistas sentem vergonha de um livro inofensivo de papel que nem podemos ter certeza se será lido por alguém. Os valores são muito estranhos, mudam tão rápido que é difícil acompanhar".

Kafka que o diga.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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