Annie Ernaux e os livros para perturbar, mexer com sonhos, desejos
"Acho que um pequeno número de críticos não me perdoa por isso, pela minha maneira de escrever sobre o social e o sexual, por não respeitas uma espécie de decoro intelectual, artístico, ao misturar a linguagem do corpo e a reflexão sobre a escrita, ao ter interesse tanto pelos hipermercados e pelo trem quanto pela biblioteca de Sorbonne. Isso os agride...".
A aceitação de Annie Ernaux no Brasil não foi tão complicada quanto na França. Apesar de seus primeiros livros publicados por aqui não terem alcançado um público enorme, elogios já pintavam sobre o seu trabalho. Quando a obra passou a ser editada pela Fósforo, em 2021, o nome de Annie deu uma guinada no país.
"O Lugar", meu preferido e que considero a melhor porta de entrada para o trabalho da escritora, é uma história sobre a espinhosa relação de Annie com o pai que acaba por revelar muito dos embates entre mundos diferentes: o rural e o urbano, o conservador e o progressista, o tradicional e o aberto ao novo, ao diferente.
Mas para muita gente é "Os Anos" (tradução de Marília Garcia, bem como "O Lugar"), apontado como a obra-prima da francesa, que merece primeira atenção. Nele, a caminhada da autora está intricada a importantes movimentos históricos da segunda metade do século 20.
São títulos que já eram comentados por leitores brasileiros quando, em outubro de 2022, Annie levou o Nobel de Literatura pela "coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e as amarras coletivas da memória pessoal". É uma autora que encanta pela maneira como consegue, a partir da própria experiência, construir textos profundamente conectados a transformações históricas e sociais.
Annie também intriga pela forma. Não foram poucas as vezes que surgiram debates sobre em qual caixinha colocar o seu texto. Ficção? Não ficção? Memória? Autobiografia? Ensaio pessoal? Romance? Algum palavrão que não condiz com a simplicidade do texto da própria Annie?
A Fósforo lançou há pouco um livro que traz perspectivas da autora sobre o seu trabalho. "A Escrita Como Faca e Outros Textos" (tradução de Mariana Delfini) pode ajudar o leitor a compreender melhor o que está por trás da produção da francesa. O volume reúne três textos diferentes: o breve discurso proferido pela autora ao receber o Nobel, a conferência Retorno a Yvetot e, o mais interessante, uma longuíssimo bate-papo com o escritor Frédéric-Yves Jeannet feito via e-mails trocados entre 2001 e 2002.
"Se eu tivesse uma definição para a escrita, seria essa: descobrir, ao escrever, o que é impossível de descobrir por qualquer outro meio, fala, viagem, espetáculo etc. Nem pela reflexão por si só. Descobrir alguma coisa que não existe antes da escrita. Aí que está a fruição - e o terror - da escrita, não saber o que ela faz aparecer, acontecer", escreve Annie no papo. É um trecho que se conecta com parte do que proclamou diante dos suecos:
"Adotei a partir do meu quarto livro uma escrita neutra, objetiva, 'simples', nesse sentido de não conter nem metáforas, nem sinais de emoção. A violência não era mais exibida, ela vinha dos próprios fatos, e não da escrita. Encontrar as palavras que contemplassem tanto a realidade quanto a sensação proporcionada pela realidade se tornaria, como é até hoje, minha preocupação constante ao escrever, qualquer que seja o objeto".
Ao longo do volume, Annie recorda: via os livros como manuais de instrução para a vida muito mais confiáveis do que os discursos dos pais ou da escola. A realidade e a verdade pareciam estar na literatura. Dentre ruídos do passado que ainda ecoam, talvez até mais altos, menciona o "falocentrismo" de Michel Houellebecq, colega conterrâneo com quem às vezes troca patadas públicas. Os dois grandes autores são desafetos de longa data.
Annie sublinha que o mundo de onde veio, o dos "dominados", segue a existir e a motivar a sua escrita tão marcada pelo inconformismo com as desigualdades sociais e de gênero. Lembrar sempre que estamos diante de textos cunhados pela perspectiva de uma mulher de origem pobre, camponesa do interior da França que se formou uma intelectual, é uma das chaves para bem entendermos essa obra.
A autora também dá pistas - e deixa a questão ainda mais em aberto - a respeito das caixinhas certinhas demais para alocar a sua literatura. "Naquela época, em 1981, e desde alguns anos antes, eu me questionava muito sobre a escrita e não confundia mais literatura e romance, literatura e transfiguração do real. Aliás, eu tinha parado de definir a literatura. Hoje também não a defino, não sei o que ela é", escreve.
E, num outro momento, traz uma visão para a literatura que pode servir de esboço para uma possível solução. Ou um desencanar da rigidez excessiva, melhor dizendo. "No fim das contas, o rótulo, o gênero, não têm nenhuma importância, sabemos disso. Há apenas livros que perturbam, abrem a cabeça, os sonhos ou os desejos".
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