Não ser tacanho é essencial para se entender de verdade com a arte
Gosto de museus pelos grandes encontros que proporcionam. No Prado, orientei meu caminho no sentido contrário à sala que mais ansiava conhecer. Estar por ali, mas postergar o grande momento ajudou a aguçar a expectativa. Aproximar-me das pinturas negras de Goya, talvez o ápice da faceta que me interessa no trabalho do pintor, foi inesquecível. Pena não ter conseguido resgatar o cachorro encurralado.
Antes, passei um bom tempo entre Hieronymus Bosch e Pieter Brugel, o velho, dois que me fascinam pela quantidade de histórias que conseguem contar num só quadro. Vamos a museus para reconhecer, ver ao vivo, meter o nariz na arte que passamos a vida contemplando por reproduções.
No Reina Sofia, já cansados, Guernica foi logo a primeira pintura do roteiro. Curioso observar nos esboços a preocupação de Pablo Picasso com o brioco do touro desesperado no canto esquerdo da imensa tela.
Nesses passeios, tão legal quanto (e, dependendo das intenções, ainda mais valioso) é adicionar novos artistas à lista de admirados. No Thyssen-Bornemisza, antes de trombar um incontornável Edward Hopper, gostei do que vi do alemão George Grosz com suas pinturas inspiradas pelos tipos que perambulavam pelas ruas de Berlim no começo do século 20.
E abri um sorriso ao me aproximar para ver de quem era uma cena sombria, na qual um senhor de chapéu e barba branca parece se preparar para lutar contra uma estátua grega na beira da estrada, em meio a árvores secas, queimadas. Numa viagem cheia de Dalis, no Museu Nacional de Arte da Catalunha me deparava com minha primeira Remedios Varo ao vivo, outro nome do surrealismo que merece atenção.
Refresco essas memórias recentes enquanto tenho em mãos "Museu", de Chabouté (Pipoca & Nanquim, tradução de Fernando Paz), grande nome do quadrinho francês. O livro é uma celebração ao d'Orsay, um dos mais famosos (e provavelmente o mais charmoso) de Paris, casa de clássicos de Van Gogh, Manet, Coubert, Renoir...
Por meio dos quadrinhos de Chabouté o leitor se coloca como um discreto observador daquilo que se passa no museu em diferentes momentos. Se de dia são os visitantes que dão movimento ao lugar, à noite são as obras de arte que ganham vida, perambulam pelos corredores, papeiam e compartilham suas angustias. Imaginar essas representações animadas, convenhamos, é um clichê, não surpreende ninguém.
A HQ cativa bem mais quando foca nas diferentes formas dos humanos interagirem com quadros e esculturas. São diversos recortes possíveis de como as pessoas aproveitam os minutos diante de trabalhos sublimes. Ou, por outro lado, demonstram quão tacanhas, pobres de espírito, podem ser.
É bonita a cena em que um cego admira a pintura e diz gostar de ouvir os quadros enquanto uma garotinha lhe descreve a imagem.
Instiga o silêncio, a contemplação, o desejo de um homem, e gera certa decepção, encontrar na arte sobre a origem do mundo o que não encontra pela vida.
Previsível a carcada no jovem bitolado no celular: seu dentista poderia pegar leve na consulta se fosse para o consultório mais sensibilizado após de passar um bom tempo entre maravilhas, argumenta o professor.
E dá raiva a mesquinhez de uma senhora apressada para correr logo para o Louvre, como se ticar atrações turísticas do roteiro fosse mais importante do que realmente aproveitar os lugares visitados. Ela braveja para seu marido imerso num quadro: "Eu tirei uma foto dele. Você pode olhar no hotel à noite!".
Não, dona, você não entendeu nada.
Muitas vezes, para curtir uma obra de arte, precisamos de um tempo para observar as minúcias. Criar intimidade e perceber detalhes que não se revelam numa batida de olho. Estabelecer um elo para tentar compreender o que não sacamos logo de cara. Nem tudo é evidente, nem tudo está dado. Vale para a pintura, vale para a literatura, vale para outras manifestações.
Se for para olhar a foto no hotel é melhor nem sair de casa, fica mais barato.
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