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Opinião

Nova onda de censura a livros: conseguiremos sair desse pântano?

Após Airton Souza ler um trecho de "Outono de Carne Estranha", romance vencedor do Prêmio Sesc de 2023, na casa do Sesc em Paraty durante a Flip, a coisa ficou esquisita. Logo começou a circular que diretores da instituição não gostaram de ouvir a cena de sexo entre dois garimpeiros.

Ninguém levantou questões literárias para reclamar do romance. Queixaram-se de seu conteúdo. Ó meu deus, homens transando! O ranço homofóbico veio embalado com a desgastada desculpa de preservar parte do público.

Notícias recentes informam que o Prêmio Sesc passa por uma reformulação. O que virá? Ninguém sabe. A promoção dos vencedores está paralisada. Falam em novas instâncias para aumentar o controle do Sesc sobre a escolha dos premiados e em critérios extraliterários para escolher os vencedores.

Caminhos para censurar o que desagrada alguns obtusos, em outras palavras. A Record, parceira do prêmio, foi firme ao demonstrar a insatisfação com tudo o que tem rolado.

Não bastassem a truculência com o livro de Airton e a mancha no Prêmio, o Sesc ainda demitiu Henrique Rodrigues, escritor e gestor cultural dos mais competentes. Mais do que ter um crachá, Henrique era um dos idealizadores e o profissional mais identificado com a distinção.

Era também a principal cabeça do Sesc para pensar a literatura, e não apenas usá-la para alguma pompa qualquer. Rodava o país ajudando a erguer eventos, azeitar programações, buscar caminhos para a formação de leitores e promover a produção brasileira. Não é apenas o Sesc que perderá com a ausência de Henrique.

O avesso

Agora foi com "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório (Companhia das Letras), livro sobre a relação de um filho com seu pai morto. É uma obra com camadas importantes de racismo e violência policial, mas também a respeito da literatura como caminho possível para a vida.

Profissionais tacanhos responsáveis por escolas de Santa Cruz do Sul (RS) e de Curitiba ficaram incomodados com o romance. Pediram para que a obra não circulasse mais entre os alunos. Fizeram escarcéu após professores selecionarem o livro por meio do Programa PNLD Literário.

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Goiás não quis ficar de fora, também acendeu suas fogueiras por meio da Secretaria de Educação. Num gesto que diz muito sobre artimanhas políticas, o governador performou horror sem sequer ler a obra de Tenório.

Ó meu deus, como poderiam jovens ser expostos a um texto com palavrões e cenas de sexo!? Que horror!

É mais um caso de livro perseguido nas escolas do país. Nos últimos anos são muitas as notícias ou relatos de obras retiradas de acervos ou, antes disso, impedidas de serem levadas para salas de aula por conta de algum parecer tosco, às vezes racista, às vezes homofóbico, sempre burro.

Só "Bíblia" e autoajuda

Reportagem da Pública: ignorando leis, presídios de Minas Gerais barram a entrada de livros literários e liberam apenas autoajuda e "Bíblia" para os detentos. Antes já proibiam a entrada de volumes que faziam apologia ao crime ou tinham conteúdos pornográficos. Agora, agentes impedem ou liberam o que pode entrar meio que de acordo com o que lhes dá na telha.

Livro do pastor? Dentro. Jorge Amado? Fora. O que é apologia ao crime numa obra de arte? Qual é o problema com o sexo na literatura? Pinochet fez pupilos ao tentar banir "Dom Quixote" durante a sua ditadura. Nos presídios, nas escolas, nas instituições, há um postulante a ditador em cada esquina do país.

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Duas notícias aparentemente desconexas e desconectadas

Segundo pesquisa feita pela Universidade da Califórnia, muitos jovens estadunidenses não gostam desse negócio de sexo no meio de filmes e séries. Quase metade dos entrevistados vira a cara para cenas do tipo. A maioria curte tramas sobre amizades e relacionamentos platônicos. Tudo bem explicadinho, bem fofinho, bem acolhedor, bem meloso e bobinho, suponho.

Enquanto isso, no Brasil, leio que a Globo meteu a tesoura em cenas nas quais um diabinho aparecia em "Renascer". Na versão original, de 1993, o capeta contracenava numa boa, mas no remake de 2024 é preciso pegar leve para não desagradar (bitolados? fanáticos?) religiosos. Capaz de inventarem de banir o tinhoso da "Bíblia" também. Esse tal deus, tão cultuado, parece ser um cara inseguro demais.

Para onde vamos?

Desde meados da década passada a história se repete, se repete, se repete, se repete... Algum moralista se depara com uma obra e começa a fazer auê. Ganha projeção entre reacionários, conservadores e, sobretudo, demagogos que abundam pelo Brasil.

Essas pessoas acham que desejos, angústias, contradições e sombras humanas não devem fazer parte da arte. Querem, quando muito, a tal arte acolhedora, que conforte. Um livro para ser lido no almoço de domingo com a família, um quadro para pendurar na sala e não desagradar nenhuma visita.

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Não entendem nem procuram entender as muitas maneiras diferentes de a arte funcionar. Mas se sentem no direito de brigar para que ninguém tenha acesso àquilo que não compreendem. Em suas cabeças arcaicas, fazem tudo isso com a melhor das intenções.

Vai além da estupidez engravatada ou do uso político instrumentalizado. Minha preocupação é outra: o cidadão comum. Aquele que se sente representado e endossa, com palavras e votos, a autoridade que vocifera bobagens contra a arte e artistas. O problema não é só quem bane, mas quem apoia o banimento e aplaude os censores da vez.

Enquanto isso, um troll, o deputado federal mais votado do país, assume a Comissão de Educação da Câmara.

Como sairemos dessa?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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