O que fazer diante da censura? Dobrar a aposta nos livros
"Nossa vida é isto: tentar fazer literatura, sim, mas também falar dela, pois falar dela significa mantê-la viva, e enquanto ela for viva a nossa vida, mesmo inútil, mesmo tragicamente cômica e insignificante, não estará perdida de todo".
Está em "A Mais Recôndita Memória dos Homens", do senegalês Mohamed Mbougar Sarr (Fósforo, tradução de Diogo Cardoso), livro que vem colecionando bons leitores no Brasil. Escreverei a respeito dele numa próxima coluna.
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Às vezes bate um desânimo. Queremos falar de livros, de autores, de literatura. Compartilhar grandes leituras. Pensar em questões caras ao meio literário. Discutir problemas de circulação e da recepção da arte em nossos dias. Não ficar na defensiva.
Nos últimos anos, no entanto, uma tarefa digna de Sísifo se impõe: bater de frente com a obscuridade. Não tem jeito, é uma praga das pragas da vez.
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Jeferson Tenório vê o seu romance "O Avesso da Pele" (Companhia das Letras) ser perseguido em vários estados do país. Airton Souza acompanhou o seu "Outono de Carne Estranha" (Record) virar problema para a própria instituição que lhe premiou, o Sesc. Demitido desse mesmo Sesc, o escritor e gestor cultural Henrique Rodrigues foi outra vítima da onda tosca mais recente.
Há pouco os três participaram de um bom episódio do podcast Rabiscos. Henrique disse algo importante: precisamos nos indignar, claro, mas não podemos ficar só na indignação. É preciso agir.
De que forma? Ainda penso em como ir além de manifestações nas redes. Apesar de necessárias, em muitos casos me lembram as notas de repúdio de Rodrigo Maia.
Tenho uma convicção: ao mesmo tempo em que brigamos para manter espaços conquistados (e sempre em risco), é preciso pregar para não convertidos. Dialogar com quem está bem longe da bolha literária, chegar a quem hoje vira a cara para livros. E adultos também merecem atenção, não só crianças e adolescentes, alvos preferenciais dos programas de incentivo à leitura.
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Notícia da semana passada mostra uma dessas ações. Vem dos Estados Unidos, onde os ataques a livros parecem ser ainda mais severos do que no Brasil. A censura corre solta na terra da liberdade.
Daí que RuPaul, estrela da tevê e drag queen das mais famosas, criou o Rainbow Book Bus, livraria instalada num ônibus escolar pintado com as cores do arco-íris que circulará por alguns dos estados mais conservadores e reacionários do país. Cerca de 10 mil livros serão distribuídos.
O gesto lembra um outro ato contra a censura, este que rolou aqui no Brasil. Em 2019, após ordem homofóbica vinda do bispo então à frente da prefeitura do Rio de Janeiro, Felipe Neto comprou uma penca de livros de alguma forma ligados à comunidade LGBTQIA+ e mandou distribuí-los para os leitores.
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Eric Novello é autor de "Ninguém Nasce Herói" (Seguinte), romance publicado em 2017 e que trata, dentre outras coisas, de formas de enfrentar o autoritarismo que persegue livros - e não só. Em sua newsletter, numa edição sobre nossos recentes casos, Eric também cita RuPaul e recorda uma instalação bonita que só.
Em "El Partenón de los Libros", da argentina Marta Minujín, tivemos uma versão da Acrópole de Atenas construída com obras censuradas pelo mundo em diferentes momentos da história. A instalação foi erguida pela primeira vez em 1983 em Buenos Aires, uma marca contra os livros banidos pela ditadura dos nossos vizinhos, e foi remontada em 2017 na Alemanha, outro país de passado tenebroso para os livros.
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Mais um trecho de "A Mais Recôndita Memória dos Homens", livro do Sarr:
"Minha vida, como qualquer vida, parecia uma série de equações. Uma vez revelado seu grau, seus termos inscritos, estabelecidas suas incógnitas e verificada sua complexidade, o que sobrava? A literatura; não sobrava e nunca sobraria nada mais do que a literatura; a indecente literatura, como resposta, como problema, como fé, como vergonha, como orgulho, como vida".
Não há outro caminho: dobremos a aposta na literatura.
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