Zoológicos humanos: livros escancaram sordidez dessas vergonhas históricas
Mais de mil ingressos foram vendidos para o derradeiro dia. Queriam descobrir o que lhes aguardava no zoológico humano, lugar que reunia umas pessoas de traços, costumes e línguas diferentes, mas capazes de atos extremamente sofisticados.
No lugar, meninos correm atrás de um cachorro "numa algazarra sem etnia". Um deles para e presta atenção naquele povo que chega aos poucos. Veste um poncho "com desenhos de serpentes bicéfalas e ondas de mar". Uma moça, ao se aproximar, "estende a ele alguns grãos de milho torrado que os visitantes recebem em saquinhos na entrada, para interagir com os índios".
Condenso a cena a partir de um trecho de "Exploração" (Todavia, tradução de Sérgio Molina), livro no qual a peruana Gabriela Wiener mergulha na história de um antepassado que "desbravou" a América para entregar ao leitor uma prosa sobre colonizações de ontem e de hoje (aqui minha resenha). Em alguns momentos a autora passa por esses espaços onde seres humanos pagavam ingressos para ver outros seres humanos mantidos em cativeiro.
"Na Alemanha e na Bélgica também foram uma atração popular, e só em 1958 foi fechado o último zoológico com pessoas em Bruxelas. Dessa vez, centenas de congoleses, muitos deles crianças, foram exibidos atrás de uma cerca de bambu. Os funcionários da exposição exortavam os visitantes a jogar dinheiro ou bananas quando aqueles estavam muito quietos", relata Gabriela, reconhecida pela raiz jornalística de seu trabalho.
Zoológicos humanos existiram aos montes pelo mundo. E sim, estavam aí até algumas décadas atrás. Pontuaram parte da história humana e se tornaram mais frequentes em séculos recentes, com a intensificação do colonialismo e, depois, de teorias impregnadas de racismo fantasiadas de ciência.
Era gente que saía de um país para explorar outros cantos da terra e, quando regressava à casa, levava consigo alguns exemplares de humanos encontrados pelo caminho. Londres, Paris e Nova York são algumas outras cidades que tiveram seus próprios zoológicos humanos, muitas vezes instalados de forma temporária.
O assunto é tratado em outro livro latino-americano lançado há pouco no Brasil. Como já havia mostrado em "Comemadre", Roque Larraquy tem talento para espezinhar a classe média de seu país, a Argentina.
Esse traço também está presente em "A Telepatia Nacional", publicado pela Moinhos com tradução de Sérgio Karam. É um romance engenhoso, fragmentado, com uma narrativa arquitetada com diferentes perspectivas e que conecta momentos díspares da história do país de Cortázar no século passado.
De cara, o leitor se depara com indígenas raptados na fronteira com o Brasil, um grupo com exemplares "dos mais primitivos que se poderia conseguir naquela zona". Seriam levados para Buenos Aires, onde prometiam ser "a delícia dos etnólogos" da coleção de um "Parque Etnográfico" em construção. É um nome pomposo para outro zoológico de seres humanos.
Daria para desprezar a Europa e a Antártida por não terem "etnias interessantes", no entanto, uns esquimós poderiam cair bem, bem como alguns brancos selvagens trazidos da Rússia, cogitam os responsáveis pela empreitada. Outro alerta: num país onde os negros foram massacrados, pessoas de pele escura interessariam o grande público.
O racismo da sociedade argentina, bem como a homofobia, são marcas fustigadas pela escrita de Larraquy. Práticas estúpidas disfarçadas de ciência convenientes a determinados grupos com poder nas mãos e as limitações da linguagem na compreensão do universo que é o outro também são elementos do trabalho do autor.
E a ironia merece atenção. Enquanto tentam erguer a versão portenha do zoológico humano, homens demonstram alguma preocupação com aqueles que pretendem confinar, exibir e servir de fonte para o lucro.
Discutem a aquisição de pessoas ao mesmo tempo em que falam em questões legais e humanitárias. Exigem que os confinados sejam tratados com respeito e tolerância. Pensam que os indígenas não teriam memória porque "a selva é sempre igual", mas mencionam o direito à privacidade num cativeiro que não fosse uma prisão.
Olhando para experiências de fora, talvez algo próximo ao relatado por Gabriela em "Exploração", um sujeito alerta: é preciso atenção para "não reproduzir os erros cometidos nos parques europeus. Não é preciso transformar o índio num pedreiro... O índio deve permanecer sendo índio".
É a literatura ajudando a escancarar todo o absurdo da coisa.
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