Memória dos Homens: o que esperar de um dos grandes livros do momento?
Mohamed Mbougar Sarr é um escritor senegalês de 33 anos que vive na França. O seu "A Mais Recôndita Memória dos Homens" lhe valeu o Goncourt de 2021 e vem colecionando elogios no Brasil desde o ano passado, quando chegou pela Fósforo com tradução de Diogo Cardoso. Diante do romance, é legítimo que o leitor também veja Sarr como um autor latino-americano. Explico.
A complexidade de nossa identidade é um dos temas explorados por Sarr ao longo das 400 páginas de "A Mais Recôndita Memória dos Homens". Não é por acaso que Elimane, personagem crucial na trama, é alguém que encontrou "na literatura seu país real, possivelmente o único".
É um romance que exala Roberto Bolaño, esse chileno tão mexicano, tão latino, e evoca em diversos momentos Witold Gombrowicz, esse polonês tão argentino. Nele, a literatura com toda a suas tensões, contradições e maravilhas surge como uma bandeira sem nação (ou plurinacional, quem sabe) pela qual dedicamos uma vida.
Ali pelos tempos em que a França celebra a sua segunda Copa do Mundo, Diégane Faye sai em busca de T. C. Elimane, conterrâneo senegalês autor de "O Labirinto do Inumano". Publicado no final dos anos 1930, o romance valeu a Elimane reconhecimento imediato seguido de uma acusação de plágio que descambou em processos e ondas difamatórias. É uma história que espelha o que aconteceu com o escritor maliano Yambo Ouologuem e o seu "Le Devoir de Violence", que venceu o Prix Renaudot de 1968 e depois caiu em desgraça.
Elimane some pelo mundo e sua obra se torna um segredo muito bem guardado, compartilhado por raros leitores. Entre mortes que parecem orquestradas, esquecimentos, mitos e doses de luxúria, um universo cativante circunda livro e autor. Encantado pelo labirinto de Elimane, é a busca por desvendar alguns desses mistérios que move Faye pela Europa, pela África e pela América.
"'O Labirinto Inumano' pertencia a outra história da literatura (que talvez seja a verdadeira história da literatura): a dos livros perdidos num corredor do tempo, nem sequer malditos, simplesmente esquecidos, e cujos cadáveres, ossadas, solidões cobrem o chão de prisões sem carcereiros, demarcando infinitas e silenciosas trilhas congeladas".
A ascensão, a queda e o culto a um autor cheio de rusgas com o meio literário. O protagonista com suas ambições e fixações artísticas. Um autor e a forma como alimenta tensões e ambiguidades sem se comprometer em entregar soluções, grandes respostas ou lições escancaradas (Sarr sabe que um livro que vem com manual de instrução é a ruína da própria literatura). São elementos de um romance fragmentado e labiríntico, como não poderia deixar de ser. É uma beleza ver um livro pretensioso bancar essa pretensão.
Numa de suas muitas camadas, temos o homem negro que ficou cego pelo amor à França e, ávido por "se tornar branco", foi morrer "numa terra branca, entre os brancos, atravessado por uma bala ou pela lâmina de baioneta branca". Remete ao tanzaniano Abdulrazak Gurnah a forma como leitor compreende em "A Mais Recôndita Memória dos Homens" o impacto da Primeira Guerra Mundial sobre povos africanos que viviam em territórios ocupados por europeus.
Ao construir a recepção da obra de Elimane, Sarr explora outros elementos que simbolizam o racismo e o colonialismo. O que certos críticos franceses poderiam esperar de um autor senegalês se não uma redução exótica da África?
Vem a cobrança para que um escritor de determinado lugar, com determinadas características, siga determinados parâmetros. Que deixe a tal da literatura universal para os mesmos de sempre. Um estrangeiro sempre será um estrangeiro - e aqui, mais uma vez, não falo apenas de fronteiras geográficas. Uma pena que o povo do cinema não esteja prestando muita atenção à literatura, pois seria difícil não associar "Ficção Americana" ao livro do senegalês.
Só que Sarr não trabalha com simplificações. A contradição entre lutar contra o sistema de poder constituído mas esperar ser reconhecido por ele está ali. Importante notar que Elimane deixa de ser visto como um sujeito com suas individualidades, autor de uma obra que mereceria ser discutida pelos méritos e deméritos literários, para virar "um negro excepcional, um campo de batalha ideológico".
A identidade - reivindicada ou projetada - do autor se sobrepondo aos elementos intrínsecos de um romance (ou conto, poema...) é outro ponto da atual dinâmica literária fustigado por Sarr. Também estão ali a influencer que "milita em todas as boas causas morais do momento". Os escritores subordinados a likes em redes sociais. Os leitores intransigentes sempre ávidos por suas representações. A ideia covarde de que não existem livros ruins, como se tudo fosse igual, reduzível a apenas um gostei ou não gostei.
O rigor com que olha para essas questões e a recusa a soluções simplistas (morais ou formais) reforça o quanto a literatura é tratada com respeito e devoção em "A Mais Recôndita Memória dos Homens". "Nossa vida é isto: tentar fazer literatura, sim, mas também falar dela, pois falar dela significa mantê-la viva, e enquanto ela for viva a nossa vida, mesmo inútil, mesmo tragicamente cômica e insignificante, não estará perdida de todo", lemos em certo momento.
Se é a busca de Faye por Elimane que move o romance, o que está em seu âmago é a "indecente literatura, como resposta, como problema, como fé, como vergonha, como orgulho, como vida" e todos os sentimentos que ela é capaz de despertar em quem a vive profundamente. É, claro, mais um elo entre Sarr e Bolaño.
A acusação de plágio que pesa contra Elimane se dá por conta das colagens que fez em "O Labirinto do Inumano". Soa como uma audaciosa brincadeira, então, o quanto Sarr aproxima - e deixa isso claro - "A Mais Recôndita Memória dos Homens" principalmente de "Os Detetives Selvagens". Elimane é a versão do senegalês de Cesárea Tinajero, a misteriosa fundadora do real visceralismo que também move jovens autores numa incessante busca.
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Há a literatura como paixão e maldição, como destino, fatalidade, algo inevitável. Como Bolaño, Sarr apresenta um texto pulsante, com personagens que parecem buscar com que suas próprias vidas sejam literatura. São leitores e escritores intensos, que se aventuram dando forma a histórias que, num movimento de dois sentidos, encontraram nos livros e levam para os livros.
E que acabam, como tantos de nós, por reconhecer a arte com toda sua complexidade como um dos pilares para a própria identidade. Abraçam a literatura como algo próximo do que poderíamos chamar de nação. Enxergam em outros leitores (escritores também, mas, acima de tudo, leitores) uma espécie de compatriota que recusa fronteiras físicas ou políticas.
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