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Opinião

A enfadonha Biblioteca da Meia-noite e o tal livro para 'todos os públicos'

Ao escrever sobre "Cem Anos de Solidão", romance que pegou para ler com desconfiança mas que acabou por lhe encantar, a escritora italiana Natalia Ginzburg fala sobre o impacto da literatura. "Os verdadeiros romances podem milagrosamente nos devolver o amor pela vida". O texto está em "Não me Pergunte Jamais" (Âyiné, tradução de Julia Scamparini).

Pois se há os romances capazes de nos devolver o amor pela vida, o contrário também deve ser verdadeiro. Ou algo próximo disso, pelo menos. Não vou dizer que balancei com relação à vida, mas em diversos momentos questionei o amor pelos livros enquanto me arrastava por "A Biblioteca da Meia-noite". É daquelas leituras que parecem intermináveis de tão enfadonhas que são. Nem as referências ao vinho foram capazes de me conquistar.

Largaria a bomba logo nas primeiras páginas se fosse um livro qualquer, mas não é o caso. Escrito pelo inglês Matt Haig e publicado por aqui pela Bertrand com tradução de Adriana Fidalgo, o negócio tem vendido pra caramba. Já foram mais de 9 milhões de exemplares mundo afora. No Brasil, há pelo menos dois anos pinta em listas dos mais comercializados.

É muita gente interessada na história de Nora Seed, mulher que aos 35 anos acumula frustrações, fragilidades e inseguranças. Não conseguiu ser a nadadora que poderia ter sido, a musicista que poderia ter sido, a esposa, a pessoa feliz, a moça amada... Não conseguiu nada.

Numa sequência caótica em que tudo o que lhe resta desmorona, Nora resolve dar um fim em sua vida. Tudo ser muito escancarado, superlativo, sem nuances parece um traço dessa literatura juvenil destinada a adultos.

Nora vai parar na biblioteca da meia-noite que dá nome ao título. É uma espécie de limbo onde, com a ajuda de uma bibliotecária, poderá acessar inesgotáveis livros que mostram o que teria acontecido caso tivesse tomado decisões diferentes ao longo de sua existência.

"Entre a vida e a morte, há uma biblioteca", lemos. Trata-se de um acervo que despreza os grandes livros de nossa história para armazenar infinitas versões de uma mesma vida. É uma biblioteca ensimesmada, com inesgotáveis possibilidades sobre um único umbigo.

Então a fórmula de "A Biblioteca da Meia-noite" se repete incansavelmente. Nora transita entre o limbo e as projeções do que poderia ter sido, mas não foi. O que faz a vida valer a pena? É um bordão que acompanha o monótono périplo da personagem que implora por complacência.

Em certa altura, a vontade é chegar na protagonista e, didaticamente, para não fugir do tom de uma literatura como essa, falar: olha, minha filha, segura a bronca pelas suas decisões e pelo rumo que sua vida tomou. Todo mundo está mais ou menos desgraçado. Vida perfeita não existe. E, sim, às vezes a coisa fica realmente difícil. Faz parte.

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Ao longo da narrativa, autores como Sartre, Thoreau e Camus são esmigalhados. Suas frases são contextualizadas como autoajuda barata para servir de bengala para os clichês do Haig. Lições de moral, sacadas sem graça e imagens toscas acompanham o combo da chatice. Pesco exemplos:

"Sua mente vomitou em si mesma".

"A cidade era uma esteira rolante de angústias".

"Lenços são como vidas. Há sempre mais".

"O vento sussurrou através das árvores".

Depois de perseguir "Outono de Carne Estranha", de Airton Souza, vencedor do ano passado na categoria Romance e promover uma caçada censora à própria distinção, o Sesc divulgou o regulamento da edição de 2024 do seu prêmio literário. Agora consta lá: o escritor precisa garantir que seu texto seja "destinado a todos os públicos".

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O que é um livro destinado a todo mundo? Precisa ser algo que satisfaça inclusive pudicos, demagogos e leitores incapazes de compreender qualquer coisa que não esteja escancarada? Só posso imaginar que um livro inventivo e ousado como "O Evangelho Segundo Hitler", de Marcos Peres, vencedor de 2013, ficaria de fora por melindrar certos públicos sensíveis ou hipócritas demais.

Sobrarão os livros insossos, calculados para não abalar ninguém, não afrontar ou desnortear leitor algum, seja pela sua forma ou seu conteúdo. "A Biblioteca da Meia-noite" poderia ser um bom concorrente.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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