O que fazer com um livro do século 19 encapado com a pele de uma mulher?
Um livro a respeito da alma humana certamente merecia uma capa também humana, como se as palavras sobre o espírito pudessem estar abraçadas por um corpo.
Algum pensamento nessa linha que levou o médico francês Ludovic Bouland a encadernar um exemplar de "Des Destinées de L'Ame", escrito no século 19 por Arsène Houssaye, com a pele de uma mulher anônima que morreu num hospital psiquiátrico.
Em 1934, um diplomata levou o exemplar de Ludovic para Harvard. Na biblioteca da famosa universidade estadunidense a história do volume encapado com a pele humana ganharia novos episódios.
Atraiu olhares curiosos por conta de suas características macabras. Serviu para trotes e brincadeiras toscas entre funcionários. Foi tratado com sensacionalismo e deboche, exibido como uma aberração de destaque numa coleção com milhões de títulos.
Um novo capítulo veio na semana passada. Harvard decidiu que o livro não fará mais parte de sua coleção. Não do jeito que está, pelo menos.
A encadernação será desfeita e prometem dar um fim mais digno, respeitoso, para a pele usada na capa. Após discussões, chegaram a essa alternativa por conta da "natureza eticamente complexa das origens do livro e sua história subsequente", informaram num comunicado.
A violência acompanha a própria história do objeto livro. Em tempos de censura, lembramos bastante dos títulos proibidos e das fogueiras para incinerar trabalhos perseguidos pelos truculentos.
Mas não é só isso. Muito sangue rolou para que certos volumes ficassem em determinadas mãos enquanto livros eram itens raros. E antes do papel e da imprensa, o couro de muitas espécies foi usado para eternizar as palavras.
"Atrás do refinado trabalho do pergaminho e da tinta se escondem, como gêmeos abandonados, a carne ferida e o sangue - a barbárie à espreita nos ângulos cegos da civilização. Nós preferimos ignorar que o progresso e a beleza incluem dor e violência. Em consonância com essa estranha contradição humana, muitos desses livros serviram para espalhar pelo mundo torrentes de palavras sábias sobre o amor, a bondade e a compaixão", escreve Irene Vallejo no ótimo "O Infinito em um Junco" (Intrínseca, tradução de Ari Rotiman e Paulina Wacht).
No século 19 a tecnologia usada já prescindia de sacrifícios. Ludovic não precisava encapar o seu exemplar de "Des Destinées de L'Ame" com a pele de uma mulher. Fez isso por capricho, o que não deixa de ser uma marca de sua personalidade e também do seu tempo: o homem estudado que se vê no direito de enfeitar um livro especial com parte do corpo de uma mulher anônima morta.
Sim, Harvard tem em mãos um objeto de natureza execrável e passado complexo. É bizarro saber que até ontem a universidade usava o livro como recurso para um marketing sombrio. Mas se o exemplar de "Des Destinées de L'Ame" não é motivo para orgulho, também não pode ser apagado da história.
Melhor faria em manter essa complexidade em seu acervo. Também é dever da universidade - de qualquer uma, não só de Harvard - preservar essas vergonhas de nosso passado.
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