A luta pela sobrevivência num deserto assolado pela guerra
"A quem você procura? Procuro o meu irmão".
Não, não era pelo irmão que o personagem buscava, mas a procura era legítima. Há muita gente em busca de alguém em "Fúria", romance da mexicana Clyo Mendoza publicado por aqui pela Peabiru (tradução de René Duarte). São pessoas atrás de pais, de outros homens, de seu passado, de um lugar no mundo. Da possibilidade de amar e de ter alguma paz.
É um livro que começa muito bem. Dois soldados se encontram diante de um cadáver. Um queria saber se havia acertado o tiro, o outro tenta descobrir se o alvejado é seu colega de tropa. Os dois estão "idiotizados" na frente do menino morto. Sentem medo. "Quem eram? Há meses que nenhum deles se lembrava de quem era".
Logo descobrimos. Eram Juan e Lázaro que, longe do campo de batalha, engrenam um romance. Um romance marcado pela aridez do deserto por onde perambulam, pelas culpas que carregam, pelo passado que nunca passa de vez, por corpos que precisam encontrar caminhos para se satisfazer.
Viajam como dois irmãos tropeiros. "Suas roupas de homem nunca delataram o que faziam à noite ou nos dias em que encontravam um lugar solitário e propício".
A guerra que arrasta para si gente que nem sabe o que defende ou por quais motivos pega em armas permeará todo o romance. Vemos como coisas se diluem na bestialidade cheia de coadjuvantes que sempre lutaram com o bando que mais convinha.
Já nem sabem mais qual é seu verdadeiro lado, onde está a justiça, como aquela estupidez toda começou. Serve também como metáfora para as batalhas pessoais travadas pelos diversos personagens que habitam "Fúria". São pessoas forjadas por diferentes formas de violência, donos de histórias fantásticas.
Estão ali o vendedor que fala de uma mulher que mordia outras mulheres e, assim, semeava o desejo por parceiras do mesmo sexo, o homem que vai trabalhar no necrotério para que consiga juntar uma grana e estudar cinema, a moça que, "como as cadelas", teria inflado, se enchido de leite e ficaria olhando para o céu à espera de algo porque não pode ter filhos.
Clyo mostra talento para cruzar histórias ou fazer com que detalhes aparentemente menores ganhem importância com o avançar das páginas. Vai bem ao construir uma prosa cheia de pesadelos, fantasmagorias e horrores corriqueiros em nossa literatura.
Não há como passar pela escrita da mexicana sem notar os toques bíblicos ou se lembrar de gente como Gabriel García Márquez, Silvina Ocampo e, acima de tudo, Juan Rulfo. "Pedro Páramo", imprescindível, ecoa tanto na trama quanto em muitas frases que encontramos ao longo de "Fúria".
"O que você vê quando não existe memória?", alguém questiona em determinado momento. É uma pergunta cara à América Latina.
Como é caro ao continente os abandonos, sumiços e esquecimentos que marcam os personagens de Clyo. A sensualidade, a busca pelo prazer e a bravura daqueles que historicamente vivem sob diversas formas de açoite também estão presentes. Há muita luta pela vida nesse deserto assolado por uma guerra de proporções míticas construído pela autora.
Fernanda Melchor e o seu "Temporada de Furacões", Brenda Navarro e o seu "Cinzas na Boca", Cristina Rivera Garza e o seu "O Invencível Verão de Liliana"...
Chamo, há algum tempo, a atenção para o ótimo momento da literatura mexicana que tem sido editada no Brasil. Clyo Mendoza com o seu "Fúria" é mais um nome para essa lista.
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