José Saramago não será revisado. Dante Alighieri não virá para a conversa
A pessoa vê o filme ou ouve alguém falar bem do livro. Se interessa pela história e resolve ir atrás de sua versão literária. Compra um exemplar pela internet. Dias depois, enfim começa a leitura. Catapimba! Dá com a fuça no estilo de José Saramago.
Avaliações de "Ensaio Sobre a Cegueira" publicadas na Amazon voltaram a divertir leitores na última semana. De tempos em tempos alguém pesca as pérolas dedicadas a esse e a outros livros no site da multinacional.
Há quem diga que a história é boa, mas impossível de ler. Reclamam principalmente da edição. Onde já se viu entregar para o leitor um texto com poucos parágrafos, pontuação esquisita, diálogos que não estão demarcados, uma bagunça incompreensível ao bater dos olhos? Espero que os erros sejam corrigidos logo, comenta alguém. Há quem reclame de a obra ser vendida com o português de Portugal.
Tem seu humor, claro, mas também mostra o quanto pecamos na formação de leitores.
A maior parte do povo não lê, ainda mais literatura. E, dentre os que leem e chegam a se interessar por um Saramago, outros bons tantos parecem não ter habilidades para compreender o escritor. Ao mesmo tempo, sentem-se confortáveis e confiantes para espalhar bobagens pela internet. Formar leitores é um desafio, aprimorar a capacidade de leitura de quem já lê é outro.
Não, Saramago não precisa de revisão mais atenta nem de edição que domestique o seu texto. Também não precisa ser adaptado para a sua língua. É bem portuguesa, aliás, essa ideia de verter o idioma para o próprio idioma, como se alguém que fala o português de um canto não pudesse usar o cérebro (e o dicionário, o google...) para arredondar a compreensão do português alheio.
É preciso se dedicar um tanto para compreender o estilo de Saramago, autor que lutou bastante com a própria criatura para levar à página em branco a oralidade que sempre lhe encantou. Normal o leitor demorar para sacar a lógica da literatura de Saramago, se familiarizar com o alternar das vozes. E é apaixonante quando a leitura encaixa e passa a fluir com clareza, ainda que sempre demande atenção.
O humor literário involuntário passa por um bom momento. Outro dia circulou o print de alguém com um pedido peculiar. Por que não convidar Dante Alighieri para papear com os integrantes de um clube de leitura? Seria de grande valia o autor apresentar seu olhar sobre o clássico que o eternizou.
Questionaria essa fé no autor como intérprete de si mesmo se não estivesse estupefato com a sugestão de ressuscitar o sujeito que escreveu "A Divina Comédia" e morreu em 1321, coisa aí de 700 anos atrás.
Pode ser falso? Hoje tudo pode ser falso na internet, me parece. Mas é crível.
Quando gente da literatura senta para tomar umas, não é raro que após esvaziarem meia dúzia de garrafas alguém lembre um causo.
Certa vez, a curadoria de um evento mandou uma mensagem aberta pelo Facebook convidando Paulo Leminski para aparecer no festival. Quem cuida da página do poeta respondeu: Gostaria muito de ir, mas, infelizmente, eu já morri. Duro, né?
E Paulo, morto desde 1989, não deu mesmo as caras.
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