Caso Tio Paulo mostra como a realidade pode ser inacreditável
Não pretendia escrever sobre o esdrúxulo caso Tio Paulo. É deprimente ver como uma cena fúnebre se espalhou como chacota pelas redes. A perversidade e a violência andam tão banalizadas que não nos chocamos com mais nada. Todo horror vira meme.
Nos últimos dias, no entanto, não teve como desviar do cadáver no banco em busca de um empréstimo de R$ 17 mil. A cena em que insistentemente pedem para que o finado em sua cadeira de rodas assine a dívida tem um toque cinematográfico. Me fez lembrar das picaretagens de "Breaking Bad".
Pelo que leio, Tio Paulo vivia num quarto improvisado numa garagem. Um lugar sem reboco, com paredes incompletas, mobiliado com uma cama de madeira, uma cadeira com mesinha e um vaso sanitário desacoplado da rede de esgoto.
O cenário escancara a miséria e remete aos ambientes domésticos encontrados em contos de Samanta Schweblin, María Fernanda Ampuero, Silvina Ocampo.
Se endividar mesmo depois de morto, por outro lado, soa como metáfora cruel. Nem mesmo na morte poderemos desencanar das finanças, esquecer boletos, ter alguma paz com o banco?
Não bastassem mortos que seguem como fantasmas em contas de redes sociais, agora mais essa. Parece que o negócio de morrer de vez é coisa do passado.
Assim que a notícia de Tio Paulo começou a circular, alguém soltou no Twitter: olha lá a realidade mostrando como é difícil fazer ficção no Brasil. É mesmo, e não só aqui. O caso entra para a coleção de episódios mórbidos que aconteceram num passado mais ou menos recente na América Latina.
Outro dia um torcedor foi às ruas da Argentina para comemorar um título do Racing carregando consigo o crânio do avô. Por lá, também tentaram roubar o coração de Maradona, ousadia que não surpreendeu os leitores de "Santa Evita", de Tomás Eloy Martínez, romance sobre périplos do corpo de Evita Perón.
São famosos os vídeos em que torcedores lacrados em seus caixões fazem gols de despedida numa pelada ou são levados para estádios. No Peru, um entregador foi flagrado andando pela cidade com uma múmia de mais de 600 anos - era a sua namorada espiritual, justificou o romântico. No Brasil mesmo, em Manaus, durante a pandemia, um sujeito desenterrou a própria avó para bailar com seus restos mortais.
Como escrevi certa vez, é um Quincas Berro D'Água em cada esquina. Gabriel García Márquez costumava dizer que os episódios mais inacreditáveis de seus livros eram reais. Por isso alertava: o que muitos chamam de realismo mágico é a mais pura realidade latino-americana.
"Acho que particularmente em 'Cem Anos de Solidão' eu sou um escritor realista, porque creio que na América Latina tudo é possível, tudo é real", diz Gabo em "Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa: Duas Solidões" (Record, tradução de Eric Nepomuceno).
Vou além. Basta um olhar atento para perceber como o fantástico é parte indissociável do real em qualquer lugar do mundo.
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